Por Márcio Fernando Elias Rosa*
Decorre da Constituição de 1988 a certeza de que a ordem
econômica é fundada, de um lado, na livre-iniciativa - típica do modelo
capitalista de produção -, mas, de outro, em princípios e valores claramente
socializadores, como a valorização do trabalho humano, a função social da
propriedade, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno
emprego e a defesa do meio ambiente, tudo para assegurar a todos existência
digna. É o que decorre claro do artigo 170 da Constituição republicana de
1988.
Em meio a isso se debate o Código Florestal agora aprovado pela
Câmara dos Deputados, do qual resultará a previsível degradação ambiental em
larga escala e a óbvia superação da tutela ambiental pela prevalência
inconstitucional dos princípios da livre-iniciativa, dando prioridade ao chamado
agronegócio. Todo o processo legislativo foi permeado pelo enfrentamento desses
interesses, não necessariamente antagônicos, e prevaleceram tristemente os
interesses econômicos.
Sob o argumento da necessidade de ampliação da fronteira
agrícola e de obtenção de segurança jurídica, dizem ser primordial a alteração
da atual legislação ambiental, com vista à flexibilização e à imposição de
retrocessos e anistias. A ciência, tentando ser ouvida e lutando para contribuir
na discussão, apontou as perdas, os retrocessos e as consequências danosas das
propostas: a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia
Brasileira de Ciências se manifestaram, em diversas ocasiões, no sentido de que
as alterações aprovadas se deram sem nenhum fundamento científico e atentam
contra a qualidade ambiental, sendo prejudiciais a todos os brasileiros. Nessa
linha, também se tem posicionado o Ministério Público.
O Brasil assistiu, em 25 de abril, à comemoração da bancada
ruralista, em todos os meios de comunicação, pois as alterações aprovadas mais
convergem para o econômico do que para o social. Desde o início do processo
legislativo, ainda no Senado, denuncia-se o retrocesso ambiental causado pelas
alterações pretendidas, dentre elas: 1) dispensa de reserva legal para os
imóveis de até quatro módulos fiscais; 2) sobreposição das áreas de preservação
permanente com as áreas de reserva legal; 3) diminuição das áreas de preservação
permanente em decorrência da mudança de conceitos importantes e já consolidados
(como, por exemplo, a medição das faixas marginais de cursos d'água a partir da
calha regular, e não do nível mais alto, impondo prejuízos imensuráveis às
várzeas; diminuição ou quase extinção nos topos de morros, montanhas e serras;
proteção das nascentes apenas perenes; redução das áreas de proteção permanente
dos reservatórios artificiais; o tratamento excludente de apicuns e salgados em
benefício da carcinicultura); 4) e anistia aos desmatamentos e às ilegais
intervenções ocorridas até 22 de julho de 2008 - apenas para citar alguns
pontos. O projeto aprovado pela Câmara conseguiu ir além: removeu a proteção das
áreas de preservação permanente de veredas; desfigurou a proteção das áreas
urbanas, já tão fragilizadas; flexibilizou, ainda mais, a reparação das áreas de
preservação permanente. E retrocedeu em pontos tidos como importantes, como o
Cadastro Rural.
Tudo isso quando o contexto mundial é de recrudescimento contra
o desmatamento, com foco nas mudanças climáticas; quando a terceira edição do
Panorama da Biodiversidade Global (GBO-3), produzido pela Convenção sobre
Diversidade Biológica, confirma que o mundo não atingiu a meta que se propôs de
alcançar uma redução significativa da taxa de perda da biodiversidade; quando a
ONU calcula que a perda anual de florestas custa entre US$ 2 trilhões e US$ 5
trilhões, número muito maior que os prejuízos causados pela recente crise
econômica mundial. E quando estamos às vésperas da Rio+20 e deveríamos estimular
a preservação, não o retrocesso ambiental.
Ao contrário da tão almejada segurança jurídica, o projeto final
aprovado põe em risco a sociedade brasileira, que tem garantido
constitucionalmente o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado. O texto aprovado passa ao largo do equilíbrio constitucionalmente
exigido e, como consequência, da sua implantação só decorrerá degradação
ambiental ainda mais expressiva.
O veto parcial dos pontos modificados pela Câmara não trará de
volta esse equilíbrio. Trará é mais insegurança jurídica. Para a correção
absoluta do intento predatório será necessário o veto total e que a nova
discussão tenha início a partir da perspectiva de que meio ambiente e exploração
agrícola não são antagônicos, mas interdependentes.
O texto aprovado afronta o sistema constitucional ao contrariar
diretamente o disposto no artigo 225 e seguintes, da Constituição. O Estado
brasileiro não assegurará o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado se ausente o real intento de preservá-lo e defendê-lo. A proposta,
ao contrário, estabelece instrumentos de perpetuação de danos e degradação,
apresentando-se claramente inconstitucional.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser a base da
agricultura sustentável e de toda atividade produtiva. Qualquer alteração que se
pretenda fazer deve ter como foco a sociedade como um todo, e não setores
específicos dela. Nenhuma se sobrepõe aos direitos fundamentais. Até porque,
como se sabe, a tutela ambiental tem natureza de direito fundamental e constitui
o epicentro do direito à vida. A Constituição democrática pressupõe que o Poder
Executivo promova o controle preventivo de constitucionalidade dos projetos de
lei, vetando-os. Não se trata de ação política, mas de exigência jurídica para a
preservação do próprio sistema constitucional. A degradação não será apenas
ambiental, será também jurídica se o veto deixar de ser
promovido.
* PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
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