segunda-feira, 11 de março de 2013

Marco Feliciano e a Tirania da Intolerância

Por Alyson Freire*


A eleição do pastor e deputado (PSC-SP) Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias significa mais do que a escolha de alguém cujas “ideias e convicções” caminham na contramão das prerrogativas, valores e propósitos de dita Comissão.  Há algo de mais grave e sintomático nesse lamentável episódio.
É certo que Marco Feliciano representa o contrário, o negativo, de tudo o que os Direitos Humanos personificam. Aliás, o deputado personifica, na verdade, tudo aquilo que os Direitos Humanos deve combater; a intolerância, o racismo, a homofobia, opressão às minorias, a ignorância, o preconceito, a estupidez, o fanatismo.
A Comissão de Direitos Humanos “desumaniza-se” quando ela tem no seu principal responsável alguém que afirma que “os africanos descendem de uma linhagem amaldiçoada de Noé”. Ela estupidifica-se quando o seu líder é alguém que defende que a “Aids é o câncer gay” e que a palavra “homossexual deveria ser abolida do dicionário, já que se nasce homem ou mulher”. E, por fim, ela perde toda sua legitimidade e credibilidade quando é presidida por alguém que luta em seu mandato para restringir direitos em vez de afirmá-los ou ampliá-los.
Há séculos, homens e mulheres, movimentos sociais e intelectuais, lutam para instituir e fomentar valores como tolerância, reconhecimento das diferenças, respeito pela dignidade e diversidade humana, igualdade de direitos, liberdade, ampliação da cidadania etc.. Esses princípios são mais do que belas palavras e conceitos. Eles carregam vidas, energias, sangue e pensamentos que foram dedicados ao combate das injustiças e opressões e a criar um outro tipo de sociedade e de mentalidade entre as pessoas. É evidente que as posições do deputado Marco Feliciano são um insulto ao patrimônio simbólico, normativo e histórico que formou os Direitos Humanos. Mas, se quisermos entender as implicações de sua eleição, devemos ir além da indignação moral que tal episódio suscita. Vamos a algumas delas.
O fato incompreensível de que nenhuma das contradições mencionadas impediu a eleição de Marco Feliciano é sintomático acerca deste espectro sinistro que avança entre nós, o fundamentalismo religioso. A confirmação do deputado do PSC como presidente da Comissão de Direitos Humanos representa mais do que um ultraje aos valores e propósitos básicos das Declarações dos Direitos do Homem e dos Direitos Humanos; significa a conquista pelo fundamentalismo religioso do que deveria ser uma das “bases” ou “trincheira” de enfrentamento contra este mesmo fundamentalismo. Trata-se, portanto, de um retrocesso civilizatório e de uma derrota política na luta contra o preconceito, a intolerância e o obscurantismo que ainda nos assombra nos mais diversos espaços sociais.
O fundamentalismo religioso cresce, avança e se institucionaliza; prolonga-se dos púlpitos e ganha os programas de televisão, a internet, as tribunas parlamentares e, agora, até mesmo órgãos que, por princípio, deveriam combatê-lo. A eleição de Marco Feliciano é um indicativo do crescimento da força política de posições religiosas radicais, ou, em outras palavras, do fundamentalismo religioso como ator político no Brasil.
Este arremate de espaços estratégicos para a defesa dos objetivos conservadores é perfeitamente legítimo numa democracia, que, como tal, deve acolher o conflito e o contraditório. Porém, como ensina pensadores políticos como Alexis Tocqueville e Claude Lefort, a democracia carrega perigos e ambiguidades que podem se voltar contra ela mesma, enfraquecendo-a, degenerando-a em tiranias e despotismos. A vitória do pastor Marco Feliciano é, também, significativa acerca dessas ambiguidades a que a democracia está sujeita.
Se, por um lado, temos essa implicação óbvia do avanço e fortalecimento do fundamentalismo religioso como ator político, por outro, temos este outro aspecto mais opaco, que é as contradições que a democracia pode suscitar enquanto forças que, à médio prazo, podem se voltar contra ela mesma. É inegável que, de um ponto de vista formal, a eleição de Feliciano é legítima. Foi eleito com legitimidade, respeitando todas as regras e procedimentos. Formalmente não há nada o que possamos criticar. No entanto, democracia é mais do que um conjunto de métodos e procedimentos de decisão. Ela é, também, um conjunto de concepções éticas e políticas e princípios normativos sem os quais as regras e os procedimentos jurídico-institucionais seriam apenas um esqueleto sem carne e sangue.
Com a regra da maioria, a liberdade de expressão e a liberdade de crença, o deputado do PSC-SP busca blindar e assegurar a legitimidade do seu preconceito e intolerância. Valendo-se, de uma maneira cínica, das regras do jogo como se fossem escudos para a promoção do ódio, Feliciano alça o preconceito e a ignorância à condição de exercício da liberdade e a intolerância em exercício de opinião.
Não é apenas o desrespeito as regras do jogo democrático que constitui ameaça à ordem democrática mas igualmente o desrespeito aos seus fundamentos simbólicos e normativos, mesmo que sancionado e autorizado segundo a letra fria da lei. As diversas manifestações odiosas de Feliciano sobre a homossexualidade e as religiões de matriz afro são a prova cabal do quanto o deputado cultiva convicções e posturas frontalmente contrários à igualdade, à dignidade, à inclusão e proteção da cidadania e liberdade das minorias. A promoção da discriminação e do preconceito, mesmo que acobertados com o manto sagrado das regras do jogo democrático, só pode lesar e enfraquecer a democracia, pois conduz a uma perigosa tirania da intolerância.
Confundir indução de discriminação, promoção da intolerância e pregação da ignorância com liberdade de expressão, de crença e opinião significa permitir que conquistas e direitos fundamentais da democracia se convertam em forças contrárias e nocivas à própria democracia. E se tal confusão não leva de repente a tirania pela violência, pelo golpe no campo das regras e procedimentos, conduz progressivamente a ele pelos precedentes que abre e pelos hábitos que gera. A sociedade torna-se mais refratária às políticas de reconhecimento e ao cultivo de formas igualitárias de convívio social e mais suscetível à intolerância e às formas de convivência social apoiadas em estigmas e exclusões.
Nesse sentido, a eleição de Marco Feliciano constitui uma ameaça bem mais ampla do que contra um grupo de pessoas específico contra o qual o pastor destila o seu costumeiro ódio e preconceito. A tirania da intolerância presente em suas posturas e pronunciamentos ameaça à própria democracia como uma forma de sociedade fundamentada na igualdade de status, na liberdade e criação e proteção permanente de direitos.
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*Alyson Freire - Professor de Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais - UFRN. Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar.

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