quinta-feira, 10 de julho de 2014

A IGREJA E OS GAYS

Por Frei Betto

        Desde o início do século XX, com o advento das teorias de Freud, tenta-se quebrar o tabu que impede a Igreja Católica de debater a sexualidade. No Concílio Vaticano II, vários bispos propuseram o tema. Os cardeais conservadores se opuseram.
       Mesmo bispos admitem que são anacrônicas as posições oficiais da Igreja quanto a certas questões, como a proibição do uso de preservativos e de relações sexuais que não tenham por finalidade a procriação etc.
       Frente à disseminação da aids, o cardeal emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, defendeu o uso de preservativos em entrevista à Folha de S. Paulo, a 16/04/95. E meu professor de teologia moral dizia que o casal só ter relações para procriar “não é teológico, é zoológico”. Hoje, sabemos que mesmo entre animais há sexualidade como expressão do afeto, bem como relações entre espécies do mesmo sexo. A homossexualidade não é, portanto, um “desvio” da natureza.
       Em maio de 2011, publiquei em O GLOBO o artigo “Os gays e a Bíblia”, para demonstrar que os evangelhos não são homofóbicos. Entre aprovações, fui alvo de ataques ofensivos. Um movimento católico ultramontano chegou a promover um abaixo-assinado pedindo a minha expulsão da Igreja.
       Agora, a 26/06, o Vaticano divulgou o “Instrumentum laboris” (Instrumento de trabalho), documento preparatório ao Sínodo da Família, em outubro próximo, em Roma, no qual flexibiliza a posição oficial católica em relação à homossexualidade. E sinaliza que a Igreja deve buscar equilíbrio entre seus ensinamentos tradicionais sobre a família “e uma atitude respeitosa, sem juízos de valor, em relação às pessoas que vivem em tais uniões” (recasados e casais gays).
       O documento resulta de uma iniciativa democrática introduzida pelo papa Francisco em uma instituição estruturalmente autoritária: em 2013, Roma encaminhou a todas as dioceses do mundo questionário com 39 perguntas, a ser respondido por leigos católicos, e não apenas por bispos e padres. O Vaticano queria saber o que pensam os fiéis a respeito da família e dos temas a ela concernentes (divórcio, recasamento, uso de preservativo, relações de gênero, homossexualidade etc).
       “A Igreja deve julgar menos e ser mais acolhedora com os fiéis que vivem em situações contrárias à sua doutrina, sejam os casais homossexuais ou os divorciados que voltam a casar”, prega o documento divulgado.
       O “julgar menos” é um golpe no farisaísmo que durante séculos predominou na Igreja Católica. Quantos divorciados e recasados se julgam impedidos de acesso aos sacramentos, sob o peso de uma culpa que não é deles!
       Ano passado, o papa advertiu que a Igreja deve ser mais tolerante com casais que contraem segundas núpcias. Afirmou que a Igreja deve agir como mãe que acolhe com zelo seus filhos, e não excluí-los.
       O questionário demonstra que a maioria dos católicos não se sente confortável ao ver que fiéis separados, divorciados ou pais e mães solteiros não são bem-vindos em algumas paróquias.
       “Se uma pessoa procura Deus de boa vontade e é gay, quem sou eu para julgá-la?”, disse Francisco, no voo que o levou de volta a Roma, após a Jornada Mundial da Juventude, no Rio.
       Se no passado o Vaticano considerou a homossexualidade “intrinsecamente desordenada”, agora considera que “os atos homossexuais são pecaminosos, mas não as tendências homossexuais.”
       Os filhos de casais gays devem ser acolhidos ao batismo e demais sacramentos com a mesma dignidade com que são admitidos os filhos de casais heterossexuais.
       O cristianismo não é um catálogo de proibições, no qual predominariam culpas, medos e condenações. É uma Boa Nova.
       A quem se interessa em aprofundar o tema da homossexualidade e doutrina católica recomendo os livros de J. Alison, “Uma fé além do ressentimento” (São Paulo, É Realizações, 2010), com prefácio de J.B. Libanio; e de John Boswell, The marriage of likeness: Same-sex unions in pre-modern Europe - As bodas da semelhança:  uniões do mesmo sexo na Europa pré-moderna (New York: Villard, 1994) (Nova York, Villard Books, 1994).

 Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.

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