Por Frei Betto
Desde o início do século XX, com o advento das teorias de Freud, tenta-se quebrar o tabu que impede a Igreja Católica de debater a sexualidade. No Concílio Vaticano II, vários bispos propuseram o tema. Os cardeais conservadores se opuseram.
Desde o início do século XX, com o advento das teorias de Freud, tenta-se quebrar o tabu que impede a Igreja Católica de debater a sexualidade. No Concílio Vaticano II, vários bispos propuseram o tema. Os cardeais conservadores se opuseram.
Mesmo bispos admitem que são anacrônicas as posições oficiais
da Igreja quanto a certas questões, como a proibição do uso de preservativos e
de relações sexuais que não tenham por finalidade a procriação
etc.
Frente à disseminação da aids, o cardeal emérito de São Paulo,
Dom Paulo Evaristo Arns, defendeu o uso de preservativos em entrevista à
Folha de S. Paulo, a 16/04/95. E meu professor de teologia moral dizia
que o casal só ter relações para procriar “não é teológico, é zoológico”. Hoje,
sabemos que mesmo entre animais há sexualidade como expressão do afeto, bem como
relações entre espécies do mesmo sexo. A homossexualidade não é, portanto, um
“desvio” da natureza.
Em maio de 2011, publiquei em O GLOBO o artigo “Os gays e a
Bíblia”, para demonstrar que os evangelhos não são homofóbicos. Entre
aprovações, fui alvo de ataques ofensivos. Um movimento católico ultramontano
chegou a promover um abaixo-assinado pedindo a minha expulsão da
Igreja.
Agora, a 26/06, o Vaticano divulgou o “Instrumentum laboris”
(Instrumento de trabalho), documento preparatório ao Sínodo da Família, em
outubro próximo, em Roma, no qual flexibiliza a posição oficial católica em
relação à homossexualidade. E sinaliza que a Igreja deve buscar equilíbrio entre
seus ensinamentos tradicionais sobre a família “e uma atitude respeitosa, sem
juízos de valor, em relação às pessoas que vivem em tais uniões” (recasados e
casais gays).
O documento resulta de uma iniciativa democrática introduzida
pelo papa Francisco em uma instituição estruturalmente autoritária: em 2013,
Roma encaminhou a todas as dioceses do mundo questionário com 39 perguntas, a
ser respondido por leigos católicos, e não apenas por bispos e padres. O
Vaticano queria saber o que pensam os fiéis a respeito da família e dos temas a
ela concernentes (divórcio, recasamento, uso de preservativo, relações de
gênero, homossexualidade etc).
“A Igreja deve julgar menos e ser mais acolhedora com os fiéis
que vivem em situações contrárias à sua doutrina, sejam os casais homossexuais
ou os divorciados que voltam a casar”, prega o documento
divulgado.
O “julgar menos” é um golpe no farisaísmo que durante séculos
predominou na Igreja Católica. Quantos divorciados e recasados se julgam
impedidos de acesso aos sacramentos, sob o peso de uma culpa que não é
deles!
Ano passado, o papa advertiu que a Igreja deve ser mais
tolerante com casais que contraem segundas núpcias. Afirmou que a Igreja deve
agir como mãe que acolhe com zelo seus filhos, e não
excluí-los.
O questionário demonstra que a maioria dos católicos não se
sente confortável ao ver que fiéis separados, divorciados ou pais e mães
solteiros não são bem-vindos em algumas paróquias.
“Se uma pessoa procura Deus de boa vontade e é gay, quem sou
eu para julgá-la?”, disse Francisco, no voo que o levou de volta a Roma, após a
Jornada Mundial da Juventude, no Rio.
Se no passado o Vaticano considerou a homossexualidade
“intrinsecamente desordenada”, agora considera que “os atos homossexuais são
pecaminosos, mas não as tendências homossexuais.”
Os filhos de casais gays devem ser acolhidos ao batismo e
demais sacramentos com a mesma dignidade com que são admitidos os filhos de
casais heterossexuais.
O cristianismo não é um catálogo de proibições, no qual
predominariam culpas, medos e condenações. É uma Boa Nova.
A quem se interessa em aprofundar o tema da homossexualidade e
doutrina católica recomendo os livros de J. Alison, “Uma fé além do
ressentimento” (São Paulo, É Realizações, 2010), com prefácio de J.B. Libanio; e
de John Boswell, The marriage of likeness: Same-sex unions in pre-modern
Europe - As bodas da semelhança: uniões do mesmo sexo na Europa
pré-moderna (New York: Villard, 1994) (Nova York, Villard Books,
1994).
Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou”
(Saraiva), entre outros livros.
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