O deputado Henrique Alves, presidente da Câmara, se irritou e pediu
abertura de processo (junto ao CNJ) contra o juiz Marlon Reis, um dos
responsáveis pela iniciativa popular da ficha limpa (MCCE), porque teria
praticado “ilícitos”, ofendendo a classe política inteira, com seu
livro Nobre Deputado (editora Leya). Juridicamente seu pedido deveria ser arquivado de plano; politicamente, vejo equívoco na iniciativa.
No livro (de leitura imprescindível, desde o segundo grau) narram-se minuciosamente todas as tramoias e maracutaias que alguns (alguns!)
parlamentares (ou candidatos) praticam para conquistar ou manter o
mandato eletivo. Em nenhum momento acusou-se de corruptos “todos os
políticos”. O picaretômetro do Lula, em setembro/93, falava em 300
congressistas! Nunca vamos saber ao certo, mas existem (daí a indignação
popular).
O livro detalha os métodos mafiosos e criminosos
empregados por alguns candidatos ou políticos moralmente não ilibados
(cobrança de propina na liberação de emendas ao Orçamento, uso de ONGs
fraudulentas para seu enriquecimento, caixa dois, caixa três etc.) para
chegarem ao poder (ou para mantê-lo, se possível eternamente).
As afirmações do livro foram reiteradas em entrevista ao Fantástico
(“Há entre os deputados pessoas que alcançaram seus mandatos por vias
ilícitas”). O CNJ deu prazo de 15 dias para o juiz se defender. Do ponto
de vista jurídico, o “processo disciplinar” deveria ser arquivado
prontamente. Por quê?
Porque a CF/88
protege exaustivamente a liberdade de expressão, ou seja, a liberdade
de informação, de imprensa e de manifestação do pensamento intelectual,
artístico, científico etc. (veja CF, art. 5º, IV, IX, XIV e art. 220 e §§). Veda-se o anonimato assim como a censura prévia ou a posteriori. Providências “disciplinares” contra um livro configuram censura posterior.
Sabe-se
que as liberdades não são absolutas. Encontram limites nos direitos de
personalidade (direito à vida, ao próprio corpo, ao cadáver, à honra, à
imagem, à privacidade etc.). O entrechoque conduz à ponderação
(princípio da proporcionalidade). Qual deve preponderar? Tudo depende da
análise do caso concreto, guiada por vários critérios.
Quais
critérios? O ministro Luís Barroso os sintetetizou: veracidade
(subjetiva) do fato ou da opinião, licitude do meio empregado para a
obtenção da informação, personalidade pública ou privada da pessoa
afetada, local e natureza do fato ou da opinião, interesse público na
divulgação da ideia, eventuais sanções a posteriori etc. Todos favorecem e amparam a publicação do livro Nobre Deputado (que se fosse exorbitante ensejaria reparação civil, nunca punição ao autor).
O
juiz não é um eunuco intelectual. Pertence a uma instituição, mas tem
liberdade científica, artística e intelectual. Quem exerce um direito
(que se transforma em dever cívico quando se trata de
criticar os políticos corruptos) não gera risco proibido (Roxin). Logo,
não há nenhum ilícito a ser censurado ou punido.
A conduta
permitida por uma norma (sobretudo constitucional) não pode ser proibida
por outra (Zaffaroni, tipicidade conglobante). O regime democrático é
um “mercado” de livre circulação de fatos, ideias e opiniões. Quando
houver abuso, cabe indenização (como asseverou Ayres Britto na ADPF 130,
que declarou não recepcionada a Lei de Imprensa).
Opino pelo arquivamento imediato do procedimento disciplinar que
tramita no CNJ contra o juiz Marlon Reis (um guerreiro do Movimento
Contra a Corrupção Eleitoral).
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* Luiz Flávio Gomes é Jurista
e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do
Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de
Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Fonte: JuBrasil
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