Por Alyson Freire*
No último dia 12/07, a prisão de diversos cidadãos brasileiros, sob alegações e
ilações no mínimo bastante questionáveis, escancara a naturalidade com que os
poderes e o Estado brasileiro lançam mão de recursos e estratégias
características de um estado de exceção. Entre os presos, estão professores,
ativistas, servidores públicos, jornalistas, advogados, estudantes menores de
idade. Muitos dentre eles foram detidos sem provas, sem direito à defesa ou com
fortes indícios de flagrantes forjados. Mais ainda: pessoas sem nenhuma relação
direta ou que mantinham relações ocasionais por compartilharem convicções
políticas e ideológicas críticas à Copa do Mundo, ao governo estadual (RJ e SP)
e federal foram enquadradas por “formação de quadrilha”! Presas porque, atentem
para o tempo da conjugação verbal, iriam se manifestar violentamente ou incitar
depredações e vandalismo num protesto que nem sequer ocorreu. Presas antes de
cometerem concretamente qualquer ilícito. Essas pessoas foram não apenas presas,
mas levadas para presídios onde algumas delas foram submetidas aos expedientes
de controle e de normalização dos condenados – uniforme, raspar a
cabeça.
Estamos diante de um fato greve em diversos
sentidos. Como sociedade, não podemos aceitar nem tomar tal episódio com a
naturalidade com a qual o poder agiu. É grave não por causa das pessoas
envolvidas, ou simplesmente por causa dos expedientes discutíveis empregados,
mas, sobretudo, pela mutação que revela e pela tendência que finca e desenha em
nosso horizonte político, em especial no que se refere à relação entre Estado,
indivíduo e sociedade civil.
A prisão de ativistas no Rio de Janeiro e São
Paulo revela mais do que a criminalização dos movimentos sociais, esta é, na
verdade, peça de uma mutação de maior monta, em que instrumentos e práticas de
exceção adquirem, sem maiores temores quanto à reação crítica da esfera pública
e da sociedade civil, ares de normalidade e generalidade abusiva. Em nome do
controle e da prevenção contra possíveis transtornos políticos que por ventura
possam comprometer ou ameaçar grandes e lucrativos eventos e personalidades
importantes do status quo, os poderes deixam de lado todo o embaraço e
discrição com que normalmente atuam, e, assim, assumem, com convicção e
violência, aquilo que os caracterizam em larga medida: a força e a
arbitrariedade.
Desse modo, a violação de direitos – no caso da
prisão dos ativistas e militantes, direitos à manifestação, ao pensamento e à
reunião – são suspensos e revogados sem a menor preocupação acerca da
repercussão e visibilidade de tais atos. Nada de agir na surdina e sob o
disfarce de generalidades, tudo é realizado à luz do dia, registrado e com
relativa transparência. Um poder que não teme dizer seu nome e de se mostrar
como tal – mesmo a irracionalidade é ostentada sem pudor. Sob o verniz do
trabalho de “inteligência”, a polícia e justiça carioca arvoram-se, inclusive, a
capacidade de prever o futuro, e, dessa maneira, evitar infrações e conspirações
vindouras. As detenções não configuram, seguramente, prisão temporária, para a
apuração, nem prisão preventiva, para assegurar o correto andamento e conclusão
do processo quando o acusado implica riscos. Ora, submetidos a esse critério e a
dita capacidade das autoridades em antecipar o futuro, quem de fato está livre
de ser detido? É grotesco.
À bem da verdade, as violações e suspensões dos
direitos individuais, assim como a arbitrariedade do aparelho de justiça e da
polícia, não são uma novidade entre nós; formam antes parte de um padrão
histórico de controle social exercido pelo Estado e suas instituições de poder
sobre a sociedade brasileira, sobretudo sobre os “não-integráveis” e as camadas
sociais oprimidas. As Manifestações de Junho e a Copa do Mundo apenas
escancararam para todos esse padrão histórico de controle social em que práticas
arbitrárias e truculentas extrajudicialmente e historicamente
institucionalizadas passaram a ser, agora, assumidas sem maiores necessidades de
justificação ideológica. Estão ali, prontas para ser registradas e filmadas por
qualquer um.
Para retomar as formulações do filósofo político
Giorgio Agamben, podemos afirmar que, nos últimos anos, a indiferenciação entre
um poder soberano e arbitrário, capaz de medidas autoritárias e à revelia das
garantias fundamentais através da declaração de um estado de sítio, e um poder
constitucionalmente legal, que se apoia e defende essas garantias, cresceu e
tornou-se bem mais visível e menos socialmente seletiva entre nós. Em outras
palavras, a despeito de vivermos sob um regime democrático com uma das
Constituições mais progressistas do mundo quanto às garantias fundamentais,
medidas de um estado de exceção tem sido tomadas com maior frequência e
naturalidade. Somente relacionado aos protestos de Junho de 2013 e à Copa do
Mundo, tivemos violência policial, prisões arbitrárias sem mandados,
desapropriações forçadas, convocações intimidatórias e preventivas para
depoimento contra organizadores de movimentos sociais e protestos,
monitoramentos eletrônicos etc.. Enquanto a força da lei e da exceção recaem
duramente sobre os manifestantes, não vejo, nem de longe, o mesmo empenho em
investigar, e, muito menos punir, policiais pelos excessos e arbitrariedades
cometidos na repressão aos protestos.
Ao invés de medidas para uma situação
extraordinária, lançadas mão em virtude de uma dada emergência, o que vemos em
ascensão, e em processo de naturalização, no Brasil são as práticas de poder de
exceção transformando-se em técnica de governo corrente na normalidade, como
paradigma do exercício do poder e padrão de ação e administração do corpo
social. A prisão dos ativistas deve ser entendida como mais um elemento no
interior dessa dinâmica de normalização e naturalização da excepcionalidade e da
cultura do controle cuja infantaria estatal tem sido as polícias e a justiça. A
novidade, por assim dizer, reside no fato de que a sombra da excepcionalidade
não é, de modo algum, hoje, um privilégio nefasto cujo peso somente os corpos
dos criminosos e as camadas mais pobres sentem. A indistinção – de vários
matizes – operada pelos poderes estatais da polícia e da justiça alarga o escopo
dos sujeitos a serem submetidos e vigiados pelo controle social
estatal.
As prisões dos ativistas e manifestantes revelam
como a exceção enquanto técnica de governo pode ser utilizada para controlar e
neutralizar protestos de rua, a organização de movimentos sociais e, também, as
intervenções críticas de intelectuais. Isso é extremamente preocupante e
hediondo porque, mais do que os corpos, é a vida política dos indivíduos que é
trancafiada e cerceada em sua liberdade. Também a justiça, como uma instituição
democrática e racional, se esvai quando abandona as clausulas pétrea e a análise
cuidadosa dos fatos para se guiar com base em presunções, pré-noções e
convicções políticas sobre os acusados.
Práticas de exceção asfixiam a vida democrática,
pois elas minam duas das condições mais vitais de qualquer regime democrático
pleno, as quais, entre nós, cidadãos brasileiros, foram tão recente e duramente
reconquistadas, a saber: liberdade de crítica e manifestação e a garantia da
integridade das vozes divergentes. Não importa se hoje não comungamos
politicamente com os que sofrem com a excepcionalidade e a arbitrariedade das
estruturas de poder do Estado, ou, mesmo se discordamos plenamente de suas
convicções e táticas políticas, porque a exceção não é uma ideologia política ou
de governo, é uma técnica de poder com a qual, no futuro, os que no presente
afirmam nós, e não “eles”, podem ser o seu alvo. É preocupante o quanto, nos
últimos tempos, temos naturalizado práticas e meios de exceção. Permitir que
tais práticas se convertam em técnica de governo corrente pode nos conduzir por
caminhos bastante conhecidos e perigosos, característicos de regimes
oficialmente autoritários.
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* Alyson Freire - Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia (IFRN). Mestre em Ciências Sociais - UFRN. Pesquisador do NUECS-DH
(Núcleo de Estudos Críticos em Subjetividades e Direitos Humanos UFRN). Editor e
integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar.
Fonte: Carta Potiguar