Para escrever este breve artigo, despi-me do penalista para expor uma opinião como cidadão. Um dos temas que mais me atormentam ultimamente é a igualdade de gêneros e a adoção de crianças por casais homoafetivos. Tive várias conversas com amigos a respeito do tema, especialmente por causa do PL 103/2012, que inclui a igualdade de gêneros no Plano Nacional de Educação e é tão combatido por grupos religiosos. O dispositivo mais interessante deste Projeto de Lei prevê o seguinte:
São diretrizes do Plano Nacional de Educação:
"(...) III - A superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual."
Li as mais diversas manifestações sobre o Projeto de Lei, em sentido favorável e contrário à igualdade de gênero e orientação sexual. Em geral, as mais enfáticas críticas negativas possuem essência religiosa e incluem o conceito cristão de família. Os mais vorazes afirmam que família é entidade constituída por homem e mulher, o resto é contrário ao ensinamentos cristãos, e tudo não passa de uma “ideologia de gêneros” para destruir a família tradicional.
A educação é um dos grandes problemas do país. É comum ouvir reclamações sobre a precariedade do sistema educacional, especialmente o público. Educação não pode ser encarada apenas como informação, mas também como formação. A terceirização da educação pelas famílias (tradicionais) para as escolas aumenta ainda mais a responsabilidade das instituições de ensino pela formação dos jovens. Por isso, promover a igualdade de gêneros e de orientação sexual é medida saudável para que as próximas gerações não sejam tomadas por preconceitos e, pior, ódio a determinados grupos de pessoas.
Uma situação que ilustra a importância do dispositivo é a possibilidade de adoção de crianças por casais homoafetivos. O argumento contrário a esse tipo de adoção mais recorrente é o preconceito que a criança adotada poderá sofrer na escola, por ter “dois pais” ou “duas mães”. Ora, quem pratica o preconceito é a pessoa que foi educada num ambiente preconceituoso ou, no mínimo, numa família que se omitiu na discussão sobre a orientação sexual. Se uma criança aprende em casa que a orientação sexual é questão pertinente apenas à própria pessoa, provavelmente será uma pessoa sem preconceitos.
Da mesma forma, quem é contrário à adoção de crianças por casais homoafetivos com base apenas em argumentos de orientação sexual possui uma limitação que impede de compreender o ser humano em seu caráter. Essa pessoa não se preocupa com o tratamento que a criança poderá receber do casal homoafetivo, e sim com a vida sexual dos adotantes. Uma coisa nada tem a ver com outra. Pouco importa o que um homoafetivo adotante faz em sua intimidade, o que interessa é o tratamento dispensado à criança adotada, pois esta foi abandonada por um casal heterossexual que não foi capaz de cria-la da melhor forma.
É claro que ainda temos uma parcela muito grande da população que não aceita a adoção de crianças por casais homoafetivos. O preconceito é um problema que não se resolve de uma hora para outra, por isso é inevitável que as primeiras crianças adotadas por homoafetivos sofram algum tipo de discriminação, pois muitas pessoas estão condicionadas a conceberem esse tipo de adoção como algo errado e prejudicial. Historicamente, tivemos exemplos de mulheres que se libertaram do machismo e sofreram preconceito, inclusive de outras mulheres. As primeiras mulheres que ousaram dissolver o casamento pela separação judicial, as que trocaram as saias compridas pelas mais curtas, as que viraram provedoras da família. Enfim, foram mulheres que sofreram preconceitos mas abriram caminho para as gerações seguintes, pois demonstraram que nada está errado na tentativa de recomeçar a vida após um casamento frustrado, no uso de uma roupa que mostrasse partes do corpo ou na independência financeira sem precisar do homem provedor.
A resistência à igualdade de orientação sexual demonstra, mais uma vez, a influência do dogma religioso na política. Cada um tem o direito de gostar ou não dos casais homoafetivos, assim como todos podem optar por seguir ou não uma religião. O que não pode acontecer é o Estado deixar-se levar por dogmas religiosos na elaboração de leis. Da mesma forma que ninguém é obrigado a gostar de uma pessoa, é ilegítimo obrigar os cidadãos a seguirem os valores religiosos fora do ambiente das igrejas. Ou seja, no ambiente familiar ou religioso existem regras que devem ser cumpridas e, caso não o sejam, pode a respectiva autoridade punir aquele que desobedece. As leis do Estado são direcionadas a todas as pessoas, sejam cristãos, sejam seguidores de outras religiões, sejam ateus. É inconcebível exigir que todas as pessoas tenham as mesmas crenças e sigam os mesmos dogmas, pois o Brasil é um Estado laico, sem religião oficial, onde impera – ou deveria imperar – a liberdade religiosa e de crença. A Bíblia é o livro mais importante do cristianismo, porém, a Constituição Federal é a lei maior do Estado laico.
Para concluir, relato uma inesquecível conversa que tive com um Desembargador do TJSP, com quem lecionei em Jundiaí. Ele me dizia que os casais homoafetivos, em geral, são os menos exigentes para adoção. São eles que escolhem as crianças mais velhas, as deficientes, as portadoras do HIV, as doentes, enfim, aquelas que os casais “homem-mulher” dificilmente consideram para adoção antes de buscarem recém-nascidos loiros e de olhos azuis no sul do país. Uma vez, o nobre Desembargador foi procurado por um casal homoafetivo que encontrava barreiras na adoção de uma criança com câncer. Segundo o casal, a pouca expectativa de vida da criança seria um empecilho para a adoção, conforme parecer do assistente social. Ao confirmar o interesse pela adoção, perante o Desembargador, o casal afirmou que a doença não seria problema, pois, enquanto aquela criança vivesse, teria todo carinho que lhe fora negado pela família biológica. Poderia ser por alguns dias, por algumas semanas, por alguns meses. O que importava àquele casal homoafetivo era proporcionar momentos felizes àquela frágil e inocente criança.
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Originalmente publicado no site UFFoco, do curso de Direito da UFF, campus Volta Redonda.
João Paulo Orsini Martinelli é Professor de Direito Penal na Universidade Federal Fluminense (graduação/pós-graduação). Pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Especializado em Direito Penal Internacional pelo International Institute of Higher Studies in Criminal Sciences (ISISC/Itália). Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Pesquisador na University of California.
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