Digladiava-se o urubu com sua carniça, seu almoço insosso, de enjoativo cheiro de cotidiano, quando abocanhou (ou seria abicanhou?) o naco do putrefato cadáver que mudaria, profundamente, a sua vida. Acontece que na mal cheirosa carne havia uma gota de algum líquido adocicado, uma gotícula escorrida de um galho de árvore acima de nosso penoso personagem.
         Aquele gosto imprevisível, substituindo repentinamente o azedume tão conhecido, produziu quase um curto-circuito neuronal. A mensagem enviada da boca ao cérebro retornou para revisão, sendo reprocessada inúmeras vezes e mantendo em paralisia sistêmica a perplexa ave boquiaberta (bicoaberta?).
         Cessada a estupefação, como um turbilhão, um tsunami neurológico, veio o êxtase!
(Pausa para acompanhar o êxtase!)
         Anestesiada, a ave só pensava (se é que pensava) em repetir a sensação. Bicada após bicada percebeu, frustrado, que não havia nada de especial na carne daquele animal apodrecido. Era uma carniça comum. Olhou ao redor, buscando a fonte daquele sabor orgástico, mas nada encontrou. Sentiu, então, uma gota pingando sobre sua cabeça. Olhou para cima, viu uma colméia. Oras... Mel? Não, não era mel, conhecera o sabor do mel, certa vez, entre os pelos da carniça de um tamanduá.
         Os insetos que voavam ao redor da colméia tampouco pareciam abelhas. Eram menores, mais escuros, delicados. Seriam abelhas sem ferrão? - pensou o estupefato urubu. Talvez então o tal líquido fosse, assim... uma qualidade diferente de mel. Ainda extasiado com o sabor paradisíaco e encantado com o deslocamento daquelas criaturas minúsculas, perdeu-se novamente em pensamentos, viagens.
         Deste dia em diante, como se fosse um ritual, levava sua comida para baixo da colméia, aguardando que uma furtiva gota caísse sobre a carniça. Com isso ficava mais exposto a perder seu banquete para os rivais, mas preferia despender mais esforço, enxotando e lutando contra outros urubus, só para ter a mínima chance de receber, ao menos, uma gotinha do saboroso líquido.
         Nossa sinistra ave fixou-se tão radicalmente nos arredores da colméia que pouco podia ser visto em seu costumeiro planar. Além disso, como passava muito tempo esperando pelo gotejar da colméia, passou a alimentar-se menos. Seus familiares o consideravam um lunático. Diziam que ele havia se apaixonado por alguma abelha.
         Trataram-no como um louco, mantiveram-no isolado, deixaram o urubu apaixonado em paz. Aquele doce amor, ainda que intenso, não era, obviamente, carnal. Descuidado de si, findou roto, abatido, deprimido.
         Perdido em sua introspecção e distraído com o zumbido de suas amadas, o urubu mal podia imaginar que, em seus vôos majestosos, era igualmente alvo de olhares perdidos e apaixonados de suas vizinhas aladas. Tampouco percebera que as gotículas, outrora casuais, passaram pingar propositadamente, adoçando suas refeições e, enfim, sua dura faina de carniceiro.
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P.S. Texto dedicado à mais bela meliponicultora das terras da pedra pintada.
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