sábado, 20 de setembro de 2014

Fundamentalismo e hipocrisia: o cenário do aborto no Brasil

Por Roberto Tardelli*
As histórias se repetiam. Eram incrivelmente iguais.
Ela está perto dos quarenta anos e já tem sua prole; mais uma criança iria exigir-lhe forças de que não dispunha; teria que parar de trabalhar nos primeiros meses e isso estava absolutamente fora de cogitação. A vida está cara e ela não dispõe de forças e tempo para correr atrás de uma pensão alimentícia miserável e sujeita, que levaria muito tempo para obter e que de nada adiantaria em sua vida.
Assim que soube estava grávida, logo nas primeiras semanas, procurou pelo pai, que a desdenhou. Humilhada, ela tentou alguma coisa, não sabia ao certo o que pedir na Defensoria Pública. Filas, fichas, a distância de sua casa, o tempo infinito para o exame de DNA, seu caçula sempre doentinho, as formas tortuosas todas que vida assume, enfim, deixaram-na completamente só.
Uma amiga, a quem encontrava sempre no ônibus lhe disse de uma mulher, lá no fim do mundo, que cobrava cinqüenta reais para fazer um aborto. Era perto do hospital e se alguma coisa saísse errada, daria tempo de buscar socorro. Cinqüenta reais é a metade da faxina. Morreu de medo, mas não viu outra forma.
Dona Marlene, nome fictício, a recebeu em sua casa; morava em uma casa muito pobre e atendia suas mulheres num quartinho do fundo, discretamente protegido. Uma mesa ginecológica velha, uns espeques que lavava com detergente. Tentou até tranquilizá-la, fazia aquilo todos os dias, era experiente. Seu plano era tão simples quanto inconsequente: com o espeque, provocaria um cutucaria o colo do útero, causando um sangramento. Seria o bastante para fazer a curetagem no hospital ali perto. Cinqüenta reais.
A dor foi lancinante e começou a sangrar muito mais do que imaginava e logo sentiu as pernas moles e tonturas; a mulher a expulsava aos gritos e um homem que não saberia descrever a levou até o ponto de ônibus. Não soube como chegou ao hospital, onde, em estado de confusão mental, acabou contando que fizera um aborto.
Voltou pra casa no mesmo dia e passou a noite em claro. Aflita.
Ou, assim que soube que estava grávida e depois de tentar em vão o apoio do parceiro, ela adquire comprimidos, que comprou em um camelô. Vem do Paraguai, ocitotec, que há muitos anos era e ainda é um poderoso e imediato calmante estomacal, mas que tem efeitos abortivos. O que se vende é uma espécie de kit. Há um site na internet, de direitos humanos das mulheres, que ensina como usar o misoprostal (Saiba mais). Não recomenda, porque é de baixa eficiência, mas também atua de forma semelhante, com sangramento e fortíssimas contrações. Custa barato, menos de cinquenta reais.
Nas primeiras semanas de gestação, o sistema nervoso central ainda não se formou e esse fato muda completamente a história.
A Lei 9.437/97 que regula a doação de órgãos funda premissas novas no Brasil, com o conceito de morte cerebral. A inexistência do sistema nervoso central, reconhecida por uma junta médica, transforma a pessoa, sempre um sujeito de direito, em objeto de direito, única forma de justificar a doação. É chocante à nossa moral conservadora e somente se retiram órgãos vitais porque não mais existe vida, mas tão somente uma atividade fisiológica.
Se não é vida humana, porque não existe sistema nervoso central, a retirada de órgãos depende apenas da decisão dos familiares – por uma idiossincrasia à brasileira – e aos médicos.
Não haverá nenhuma heresia jurídica em se dizer que a gravidez, quando ainda não formado o sistema nervoso central, pode ser interrompida, pela simples razão de não haver bem jurídico a ser tutelado. É o que juristas chamariam de fato atípico.
Esse aborto, portanto, poderia ser feito no SUS, em ambiente hospitalar de segurança e de assepsia. O terrível sofrimento por que passou essa mulher não teria sentido e jamais ré ela seria porque o fato não seria criminoso.
O dado perverso do respeitadíssimo Hospital Pérola Byington: um milhão de abortos foram realizados no Brasil. Desses, cerca de 250 mil resultaram em internações de mulheres. É a quinta causa de morte feminina no país. Uma tragédia que aumenta ainda mais se houver uma sintonia fina nesse dado aterrador, que engloba abortosseguros, feitos em clínicas e abortos inseguros, como esse descrito nesse texto, em que os riscos de morrer se multiplicam por mil.
Essas mortes seriam evitáveis e decorrem de uma legislação avestruz que nega a realidade que ela mesma impõe. Nos países em que a interrupção da gravidez é uma decisão da mulher, as taxas de morte e complicações são infinitamente menores. O Brasil, nessa reação de avestruz, acaba por ter uma fábrica de órfãos, exatamente os demais filhos de quem teve que se submeter a esse açougue e que ficou no caminho.
Essa mulher que passa por essa terrível experiência será ré, de processo cujo julgamento estará a cargo de seus pares, de sua comunidade e acabará sendo julgada duas vezes, pelo crime anacrônico e pelas pessoas que haverão de se sentar no conselho de sentença. Será julgada pela família, será acusada e poderá sofrer processualmente o que jamais imaginou.
Além de quase perder a própria vida, será acusada criminalmente.
Quanto à questão religiosa, já aprendemos a conviver em uma democracia de credos e descriminalizar o aborto não significa troná-lo obrigatório ou dele fazer um método estendido de contracepção, mas apenas de salvar da morte e do sub-mundo centenas de milhares de mulheres, brancas, negras, mulatas, católicas, evangélicas, judias, ateias. A quem não admitir a prática, é simples, basta não fazer.
Essa mulher carioca que morreu, por um aborto mal sucedido, não morreu apenas do tiro que levou. Um outro tiro lhe foi disparado antes, um tiro de fundamentalismo, contra o qual não existe defesa.
A descriminalização importaria em vidas que seriam poupadas, em filhos que continuariam próximos a suas mães. A vida seguiria, menos arriscada, menos hipócrita, menos órfãos, menos humilhação, menos dor, menos desespero, menos solidão.
Seria um enorme avanço.
____________________________________________________________
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça no Estado de São Paulo.
Fonte: JusBrasil

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

ASSAÍ ATACADISTA: OPORTUNIDADE DE EMPREGO PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

A empresa Assaí Atacadista contrata:

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, para atuar nas nossas lojas localizadas em todo Brasil.

VAGA:
Operador de Loja “Repositor”, Operador de Caixa e Empacotador.

Requisitos:
•Acima de 18 anos;
•Ensino fundamental incompleto;
•Não exige experiência e oferecemos treinamento;

Benefícios:
•Assistência Médica;
•Assistência Odontológica;
•Cesta Básica;
•Refeição no local de trabalho;
•Vale Transporte;
•Seguro de Vida;
•Auxilio funeral;
•Cooperativa de Crédito;
•Cartão corporativo Multicheque;
•Cartão da mamãe;
•Kit enxoval do bebê.

Horário de Trabalho:
Escala de trabalho 6 por 1, das 7h às 15h20 e das 14h as 22h20 

Interessados:
Enviar currículo e laudo médico atualizado, para o e-mail: fabiani.catarino@assai.com.br no campo assunto identificar Nº CID e estado que tem residência fixa.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Revista íntima em presídios: flagrante violação dos direitos das famílias dos presos

Nove estados já proibiram a revista pessoal vexatória em unidades prisionais

Pelo menos em nove estados brasileiros foram baixadas normas que proíbem a realização de revista íntima para ingresso em unidades prisionais. Nesse tipo de averiguação, o visitante é obrigado a ficar nu, saltitar, agachar-se e ter as partes íntimas inspecionadas. Com frequência, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e outras instituições recomendam o fim desse procedimento, por considerá-lo ofensivo aos direitos individuais garantidos pela Constituição Federal.

"A revista vexatória ė, simultaneamente, grave violação à individualização da pena e atentado à dignidade da pessoa humana do visitante. E, por isso, nunca deveria ter existido", afirmou o conselheiro Guilherme Calmon, supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), do CNJ.

A mais recente ofensiva contra essa prática foi adotada no último dia 2 de setembro, quando o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) publicou a Resolução n. 5, de 28 de agosto de 2014. Ela determina a substituição da revista íntima pelo uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, aparelhos de raios X, escâner corporal, entre outras tecnologias capazes de identificar armas, explosivos, drogas e outros objetos ilícitos. A norma substitui outras duas resoluções do colegiado, de 2000 e 2006, igualmente contrárias à revista vexatória.

A primeira unidade da Federação a proibir o procedimento foi Minas Gerais, por meio da Lei Estadual n. 12.492/1997. A mais recente foi o Amazonas, onde, em 21 de agosto deste ano, o juiz Luís Carlos de Valois Coelho, titular da Vara de Execuções Penais do estado, assinou a Portaria n. 007/14/VEP, que proíbe a prática na capital Manaus.

Pesquisa  A portaria do Judiciário amazonense, além da proibição, destaca que a revista íntima não garante a apreensão de objetos proibidos. O texto cita pesquisa da Rede Justiça Criminal, divulgada neste ano, segundo a qual, no estado de São Paulo, apenas 3 em cada 10 mil procedimentos de revista íntima resultaram na apreensão de objetos proibidos. A pesquisa relata também a inexistência de armas entre as apreensões e acrescenta terem sido encontrados 4 vezes mais objetos proibidos no interior das unidades prisionais que com os visitantes.

A portaria inclui também dados do Núcleo Especializado em Situação Carcerária e da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do estado de São Paulo. Segundo eles, foram realizados 3.407.926 procedimentos de revistas íntimas vexatórias em todo estado em 2012. Em apenas 0,013%, foram encontrados aparelhos celulares e, em 0,01%, entorpecentes, sendo que em nenhum caso houve apreensão de armas.

Outros estados que baixaram normas contra a revista vexatória foram Paraíba (Lei Estadual n. 6.081/2010), Rio de Janeiro (Resolução n. 330/2009 da Secretaria de Administração Penitenciária), Rio Grande do Sul (Portaria n. 12/2008 da Superintendência dos Serviços Penitenciários), Santa Catarina (Portaria n. 16/2013 da Vara de Execução Penal de Joinville), São Paulo (Lei Estadual n. 15.552/2014), Espírito Santo (Portaria n. 1.575-S, de 2012, da Secretaria de Estado da Justiça), Goiás (Portaria n. 435/2012 da Agência Goiana do sistema de Execução Penal) e Mato Grosso (Instrução Normativa n. 002/GAB da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos).

Denúncia  Entre os nove estados que adotaram a medida, Goiás é um dos exemplos do resultado da articulação do CNJ com outras instituições. No estado, a parceria foi com o Ministério Público do Estado, que, por meio do promotor de Justiça Haroldo Caetano, enviou ao Conselho, em 2012, denúncia e vídeo com flagrantes de revista íntima. A partir daí, os dois órgãos passaram a cobrar providências da Agência Goiana do Sistema de Execução Penal (Agsep), hoje transformada em Secretaria de Estado da Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus).

Era março de 2012, quando o DMF, do CNJ, pediu explicações à Agsep e encaminhou o vídeo à Procuradoria-Geral de Justiça de Goiás “para adoção de medidas que entender pertinentes, pois as imagens revelam inaceitável violação ao princípio da dignidade da pessoa humana”. Quatro meses depois, em julho daquele ano, a Agsep baixou a Portaria n. 435/2012, que proíbe qualquer ato que obrigue o visitante a se despir, ficar agachado, dar saltos, submeter-se a exames clínicos invasivos – a exemplo do toque íntimo – ou “qualquer atitude ofensiva à sua dignidade humana ou à sua honra”.

A portaria da Agsep orienta os visitantes sobre que roupas devem utilizar para facilitar a revista nas unidades prisionais. O traje recomendado para os homens é “calça e/ou bermuda abaixo do joelho, camiseta sem gola polo e tênis de solado fino semelhante ao usado em futebol de salão, ficando vedado uso de camiseta com botões”. Para as mulheres, “vestidos de malha ou tecido semelhante, sem decote e abaixo do joelho ou calça de malha e blusa de malha ou tecido semelhante, sem decote e de chinela rasteira ou sandália baixa”.

Detectores  Segundo o Superintendente de Segurança Prisional de Goiás, João Carvalho Coutinho Júnior, “a revista vexatória está extinta no estado”. Ele conta que o visitante trajado conforme prevê a portaria, ao chegar a determinada unidade prisional, precisa ficar de roupas íntimas e passar por detectores de metais, operados por agentes do mesmo sexo. Após a vistoria, se nenhum objeto proibido for encontrado, a pessoa é autorizada a entrar. Por outro lado, quem estiver com trajes incompatíveis com a portaria, “não é revistado e também é proibido de ingressar na unidade prisional”.

O superintendente informou também que está em fase final processo de licitação para aquisição de quatro equipamentos do tipo escâner corporal, a serem instalados para o reforço da vigilância nas duas maiores unidades prisionais de Goiás. São elas a Penitenciária Odenir Guimarães, situada no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, e a Casa de Prisão Provisória de Goiânia. Juntas, elas abrigam cerca de 3,5 mil detentos e recebem, a cada domingo, até 3 mil visitas, das quais 90% são de mulheres.

O CNJ recomenda o fim da revista vexatória sempre que ela é verificada nos mutirões carcerários ou mesmo denunciada ao órgão. Um exemplo foi o mutirão realizado no Presídio Central de Porto alegre (PCPA) no período de fevereiro a março deste ano. O CNJ flagrou a aplicação do procedimento, apesar de ele ter sido proibido pela Portaria n. 12/2008 da Superintendência dos Serviços Penitenciários do Rio Grande do Sul (Susepe).

Regalia  Segundo o relatório do mutirão, aprovado pelo Plenário do Conselho em 16 de junho, na 191ª Sessão Ordinária, só os visitantes dos líderes das facções criminosas que controlam o PCPA estão livres da revista. A regalia, segundo constatou o CNJ, tem a anuência da Brigada Militar, que administra a unidade. Os demais visitantes, no entanto, precisam chegar à unidade às 5 horas, passar por todos os procedimentos de segurança, até chegar, por volta das 11 horas, às galerias.

No momento, a Susepe promove o esvaziamento do PCPA com a transferência de detentos para novas unidades prisionais em construção no estado. A medida atende às recomendações do CNJ, do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul e do Fórum da Questão Penitenciária. Elas foram feitas diante das precárias condições do presídio, considerado inseguro e sem condições estruturais para continuar em funcionamento.
_______________________________________
Fonte: CNJ

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Juízes pedem R$ 7 mil mensal para pagarem estudo dos filhos

Por Luiz Flávio Gomes*
A presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro enviou para a Assembleia Legislativa um projeto para conceder auxílio-educação para os filhos de juízes e servidores do Tribunal. Para os magistrados, o auxílio mensal seria de até R$7.250,00 e para os servidores de até R$3.000,00. Segundo Adriana Cruz (O Dia), a proposta ainda prevê R$ 20 mil por ano aos juízes para investirem em estudo. Os servidores receberiam mais R$ 500. O auxílio-educação postulado pode chegar a R$9 mil, se passarem os novos vencimentos dos ministros do Supremo (para R$ 35 mil). A Associação dos Juízes ainda quer mais R$ 1.100 como auxílio-transporte.
Antes das eleições todas essas propostas (nitidamente indecorosas) não serão votadas (porque os deputados estaduais estão em campanha). “A Justiça parece que não entendeu o recado das ruas, no ano passado, com as manifestações que caracterizaram falta de representatividade. Nenhum professor do estado ganha o que os magistrados querem de auxílio-educação”, criticou o deputado estadual Marcelo Freixo, do Psol. No ano passado os deputados já aprovaram o auxílio-moradia para magistrados e membros do Ministério Público sem questionamentos. Atualmente, os valores giram em torno de R$ 5 mil, segundo desembargadores ouvidos pelo jornal O Dia.
É uma incongruência manifesta os tribunais afirmarem que não há verbas para contratar novos juízes ou para melhorar o serviço público da Justiça (reconhecidamente moroso) e, ao mesmo tempo, pedirem mais benefícios mensais que driblam o teto salarial dos desembargadores. A proposta auxílio-educação é indecorosa em todos os seus aspectos, mas existe no seu seio outra aberração inominável, que faria corar qualquer aristocrata racista: o valor distinto para magistrados e servidores significa o quê? Que o filho do magistrado tem que estudar em um lugar melhor do que o do servidor, fazendo preponderar a histórica desigualdade de classes? No tempo do Brasil colonial e imperial o sonho de todo fidalgo era colocar o filho na “folha do Estado”. Esse sonho cultural não acabou; a diferença é que agora já se pretende que o filho vá para a “folha do Estado” desde o jardim da infância.
Depois de alguns anos de vida e de muitos estudos, nada mais natural que os humanos conquistarem incontáveis e díspares ideias e visões do mundo (Weltanschauung). Para transformá-las em algo valioso e útil na vida terrena, antes de tudo devemos combiná-las e submetê-las à moral e às virtudes. A primeira categoria a se dissipar, diante desse acurado exame, é a da vulgaridade (todo esforço do mundo para contê-la será pouco diante dos nefastos efeitos que ela produz ao longo das nossas transitórias existências). Sobretudo quando governamos interesses coletivos, não há como deixar de cultivar a moral e as virtudes, não somente porque dos dirigentes sempre se espera exemplaridade, senão também porque são elas que conferem ao espírito o senso do justo em sua mais profunda extensão e ao caráter a devida elevação assim como a necessária firmeza.
Todos os humanos que assumem o destino das coisas públicas, incluindo os juízes, evidentemente (sobremaneira quando assumem cargos administrativos de governança), deveriam ser obrigados a se submeterem a um curso intensivo, se não de geometria (como postulava o espírito exigente de Platão), ao menos de moderação, tal como pugnava Aristóteles, para afiar a personalidade do administrador e distanciá-lo dos vícios mais deploráveis que podem rondar o exercício do poder, nutrindo sua alma e seu espírito de um conteúdo substancialmente sólido (apesar da sociedade líquida que vivemos, como diz Bauman), de forma a evitar-lhe ao menos os deslizes mais canhestros ou as tentações mais extravagantes, tal como sugeria Stuart Mill).
Por força do princípio da moderação de Aristóteles, para cada virtude existem ao menos dois vícios. Se queremos promover o bem, se queremos ser exemplares para nossos filhos e concidadãos (“Age de tal forma que a máxima do teu querer possa valer em todo o tempo também como princípio de uma legislação geral” – Kant), o primeiro que temos que fazer consiste sempre em evitar o cálice dos excessos, dos vícios e das extravagâncias. A lição aristotélica nos ensina que a coragem desdenha a covardia e a temeridade; a justiça se afasta tanto da fraqueza como do rigor; a temperança é inimiga da devassidão bem como da austeridade; a religião ergue-se entre a impiedade e a superstição; a liberdade se ancora entre a escravidão e a licença e assim vai.
Cai em desgraça infernal (tal como a narrada por Dante) quem, fazendo uso da liberdade, sucumbe à vulgaridade e se concede a soberba licença para promover o escatológico, o estrambólico, o desregrado, o nauseabundo, o asqueroso, o repelente, o repugnante, o bestial, o inconveniente, o abjeto, o sórdido, o torpe, o nefando, o execrável, o obnóxio, o vil, o desprezível, o ignóbil ou o esquálido. Não faltam no mundo, no entanto, pretextos e motivos para se negar a aplicação das doutrinas mais nobres e elevadas, de quantas o humano civilizado já produziu. Mas todas as propostas frívolas e levianas devem ser refutadas de plano, ou seja, devem ser abandonadas à sua própria nulidade, mesmo correndo o risco de o desprezo ser interpretado como uma hostilidade pessoal. Toda proposta que viola a regra da moderação (de Aristóteles) em nada edifica quem aspira deixar um nome respeitado e glorioso. Tendo em vista o que já ganham os juízes, a razoabilidade assim como a imperiosidade da moderação aristotélica, somos pelo NÃO ao citado auxílio-educação.
___________________________________________
Luiz Flávio Gomes* - Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Fonte: JusBrasil

Tiririca, TSE e a verdadeira ironia das eleições

Por Fernando Chiocca
Quem acha que a maior ironia destas eleições é a candidatura do humorista Tiririca a deputado federal deve reconsiderar. Existe outra campanha que supera em muito a engraçadíssima campanha do palhaço e que coloca todos os indivíduos na posição de palhaços: a campanha do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com o slogan "Você pode escolher o seu destino", a campanha faz uso de diversas analogias que buscam conscientizar o eleitor da importância do voto — o que é um contrassenso, pois o voto é obrigatório, e não há sentido em argumentar se já existe o uso da violência. O regime sobrevive através da propaganda que tenta dar uma legitimidade ao ilegítimo. Porém, o irônico é que esta campanha das eleições 2010, se analisada atentamente, acaba por denunciar toda a farsa do sistema.
Uma peça publicitária faz uma analogia entre a contratação de um funcionário e a escolha de um candidato. O regime tenta fazer parecer que a decisão está nas mãos de cada eleitor, como se eles fossem o dono da empresa e o político o candidato que deve preencher seus requerimentos e obedecê-lo após eleito. E nada poderia estar mais longe da realidade. Além do fato de que cada empresário escolhe individualmente seus funcionários e pode demiti-los quando quiser, outro ponto crucial deste artifício da propaganda estatal foi retumbantemente desmascarado já em 1870 por Lysander Spooner:
Eles [os oficiais eleitos do governo] não são nossos empregados, nossos agentes, nossos procuradores e nem nossos representantes... [pois] nós não assumimos responsabilidade pelos seus atos. Se um homem é meu empregado, agente ou procurador, eu necessariamente assumo a responsabilidade por seus atos realizados dentro dos limites da autoridade que eu conferi a ele. Se eu depositei nele, como meu agente, a autoridade absoluta, ou qualquer autoridade que seja, sobre a pessoa ou propriedade de outros homens que não eu mesmo, eu necessariamente me torno responsável por quaisquer danos que ele possa causar a eles, desde que ele aja dentro dos limites da autoridade que eu concedi a ele. Porém, nenhum indivíduo que tenha sofrido danos sobre sua pessoa ou propriedade, através dos atos do Congresso, pode ir aos eleitores individuais e afirmar que eles sejam responsáveis pelos atos de seus supostos representantes. Este fato demonstra que estes pretensos representantes do povo, de todo mundo, são na realidade os representantes de ninguém.
Um spot de rádio que faz um apelo para que aqueles que não são obrigados a votar votem, diz o seguinte:
[Pessoa 1] - E aí, o que você vai querer comer?
[Pessoa 2] - Qualquer coisa, escolhe aí você.
[Pessoa 1] - Ok!
[som de campainha] Blim-Blom
[Entregador] - Entrega! Pizza de dobradinha com jiló e borda de chocolate. Aqui ó, sua notinha.
[Pessoa 2] - Arghh.
E se pedir uma pizza fosse realmente como escolher os candidatos? As pessoas vão às urnas escolher seu sabor preferido. A pizza vencedora é entregue todo domingo durante quatro anos nas casas de todos, mesmo daqueles que não gostam de pizza ou que estão de dieta. No fim de cada ano, um funça da Receita Federal bate em todas as portas recolhendo o IP, imposto da pizza. Os dois maiores partidos são o PM, partido da mozarela — altamente apoiado pela indústria laticínia —, e o PC, partido da calabresa — que recebe verbas dos produtores de carne. Dentro dos partidos existem subdivisões. O PC conta com as alas da calabresa com cebola e sem cebola. A principal bandeira dos cebolistas é a satisfação de todos; quem não gosta de cebola pode deixá-las de lado no prato, ao passo que, se a pizza fosse entregue sem cebola, os que a desejassem não teriam opção. Já o apelo dos sem-cebola é priorizar nossas crianças, que odeiam cebola. Esta retórica mantém os sem-cebola como facção dominante do PC. O PQQ, partido da quatro queijos, e o PP, partido da portuguesa, nunca conseguiram chegar à marca de 10% dos votos. No final, as pessoas que preferem um destes acabam votando ou no PC ou no PM, apenas para tentar impedir a vitória do sabor que elas gostam menos. Já o PA, partido da aliche, jamais conseguiu chegar a 1% dos votos. Hoje, após quatro anos de PM, o PC é o favorito nas pesquisas.
Alguém em sã consciência — com exceção dos beneficiários diretos, como os produtores do ingrediente vencedor ou os membros dos partidos — apoiaria tal arranjo de fornecimento de pizza, onde cada indivíduo teria 0,0000000001% de influência sobre o gasto de seu dinheiro? No entanto este arranjo é apoiado por uma maioria quando se trata do fornecimento de bens e serviços considerados muito mais importantes que a pizza!
Porém, para desespero dos ideólogos do estado, milhões de indivíduos têm ciência da palhaçada em que consiste este sistema, e demonstram isto por meio dos chamados 'votos de protesto'. No Rio de Janeiro, os humoristas do Casseta e Planeta lançaram a candidatura não oficial do macaco Tião; em 1988, o animal recebeu 400 mil votos e ficou em terceiro lugar na eleição para prefeito. Ainda mais expressiva foi a votação que o rinoceronte Cacareco recebeu para vereador de São Paulo em 1958, 100 mil votos, sendo que o partido mais votado na época não chegou aos 95 mil votos. Após o surgimento da urna eletrônica, este voto de protesto adquiriu nova forma, pois se tornou impossível escrever qualquer nome nas cédulas de papel. Em 2002, uma figura caricata que aparecia no horário eleitoral gritando e se portando como um louco foi o deputado federal mais votado da história do país; Enéas recebeu mais de um milhão e seiscentos mil votos. Este ano, quem desponta como provável recebedor dos votos cacarecos é o humorista Tiririca, com a candidatura mais escrachada já vista. Ao contrário de Enéas, que era uma piada que se levava a sério, Tiririca se assume uma piada. E é uma piada de uma piada maior ainda, as eleições.
Esta forma de protesto realmente vale a pena? Ao denunciar a fraude que é o estado, Hoppe atentou para o fato de que
Uma das coisas que mais ameaça o estado é o humor e a risada. O estado presume que você deve respeitá-lo, que você deve levá-lo muito a sério. Hobbes dizia que era algo muito perigoso o fato de as pessoas rirem do governo. Portanto, tente sempre seguir a seguinte regra: ria e zombe do governo o máximo possível.
Os estatistas estão cientes da ameaça que o humor representa. O ministro da culturacriticou o deboche que Tiririca faz da democracia; o candidato ao governo do partido aliado Aloizio Mercadante exigiu que ele mudasse o tom da campanha. Candidatos adversários usam seu tempo no horário eleitoral para lembrar os eleitores que voto é coisa séria[1]; coisa que a propaganda oficial do regime sempre tenta frisar com suas analogias sem sentido. O ataque ao deboche vem até de articulistas liberais. Alguns dizem que este tipo de "protesto contra o governo" é um tiro que sai pela culatra, pois o partido de Tiririca é da base aliada do PT. Mas eles pecam ao considerar que isto seja um protesto contra o governo. Não é. É algo muito mais relevante; é um protesto contra o estado. Protestar contra o governo atual é o papel da turma da oposição, que, com seus ataques pueris contra determinado partido, acabam na prática apenas legitimando o sistema — segundo eles o problema não é o voto, mas sim em quem se vota. Ao invés de direcionar seus esforços para acabar com o sistema de eleições de pizzas, eles lutam por uma azeitona a menos na pizza de mozarela — ou uma azeitona a mais, já que Serra se diz à esquerda de Lula, prometeu duplicar o bolsa família e, onde governou, implementou depravações à propriedade privada, como a nazista lei antifumo. Meu sabor predileto é calabresa com cebola, mas não vou fazer campanha pelo PC porque não quero impor à força minha preferência aos outros. Na falta de alguém que defenda mudanças não apenas no conteúdo, mas também na forma, resta-nos apenas ridicularizar o sistema.[2]
Como concluiu David Heleniak em seu artigo Zombe do Voto,
Quando podemos escolher somente entre candidatos a serviço da elite governante, votar se torna uma piada. Voltaire, o indiscutível líder do Iluminismo, tinha como principais armas o humor e a sagacidade e, 'diante do absurdo, ele ria'... Ao fazer pouco caso do poder divino dos reis, os iluministas o destruíram. Este ano, zombe do voto ou nem saia de casa.
____________________________________________
[N. E.: o texto foi publicado originalmente em 9.9.10. As referências a candidatos, campanhas e peças publicitárias, portanto, dizem respeito ao pleito eleitoral de 2010, embora grande parte delas se mantenha atualíssima em 2014. Em nossa opinião, isso demonstra que certos fenômenos, longe de representarem meras "deturpações" do sistema democrático, na realidade fazem parte de sua própria natureza]

Fonte: JusBrasil 

Ambientalistas pedem mudanças urgentes em hábitos de consumo

Pesquisadores de diferentes lugares do mundo são unânimes em constatar: as consequências do aquecimento global são reais, e não mais previsões. Sob este argumento, formularam um "Alerta", publicado na edição desta segunda-feira, dia 15, do jornal norte-americano The New York Times.
O "Manifesto Internacional" - organizado pela Fundação Europeia do Meio Ambiente - colheu 160 assinaturas em apelo que visa influenciar a Cúpula do Clima da ONU, que terá inicio em Nova Iorque no dia 23. O encontro deve desenhar decisões a serem sancionadas na Conferência do Clima da ONU marcada para dezembro de 2015, em Paris.
O apelo dos pesquisadores é para que líderes globais iniciem imediatamente processo de mudança de hábitos de consumo e priorizem a utilização de fontes de energia limpa, em substituição aos combustíveis fósseis. Ganhador do prêmio Unep-Sasakawa da ONU por sua atuação em defesa da biodiversidade, o brasileiro Dener Giovanini é um dos signatários do manifesto.
"Pela primeira vez se reuniu em um documento único aquelas pessoas que o mundo reconhece que têm um trabalho importante na área ambiental. Esse fato é inédito", afirmou o pesquisador brasileiro ao Estado, utilizando um tom de urgência. "As principais lideranças ambientais do mundo concordam em um ponto: a gente deve encarar o problema do aquecimento global como real e que já está batendo às portas. Já não estamos mais fazendo previsões", disse Giovanini.
Um exemplo concreto dado pelo ambientalista é o da prolongada estiagem no Estado de São Paulo. Além da falta de água em residências paulistanas em alguns momentos do dia, a população é diretamente prejudicada pela paralisação da Hidrovia Paraná-Tietê, utilizada em território paulista para o transporte de carga e alimentos. Em razão disso, produtos chegam encarecidos às prateleiras porque há um custo maior quando o translado é feito por caminhões.
O agravante, segundo o ambientalista, é o ciclo vicioso que esse cenário representa, uma vez que mais combustíveis fósseis são utilizados nas vias rodoviárias e mais agredido o meio ambiente é. "A palavra mais falada hoje é 'sustentabilidade', mas, infelizmente, é ela a que menos colocam em prática", queixa-se Giovanini.
Marco nas discussões envolvendo um modelo global menos nocivo ao meio ambiente, o Protocolo de Kyoto foi assinado em 1997, mas nunca colocado efetivamente em prática. "É preciso haver uma mudança de paradigma mundial, o que necessariamente significa sacrifício. O que se vê hoje é a tentativa de empresas e governos de vender produtos apenas com uma nova roupagem, o que é enganar a população", afirmou o ambientalista.
Giovanini prevê que os países ainda em desenvolvimento serão os mais contrários a qualquer mudança no modelo atual nas próximas discussões, pois vêm de práticas agressivas ao meio ambiente suas maiores fontes de renda. A crítica se estende ao Brasil, que lucra no mercado internacional principalmente pela venda de commodities como a soja, plantio que ganha espaço em território nacional por meio do desmatamento de reservas ambientais.
"O Brasil historicamente assume uma postura de se colocar 'em cima do muro'. A gente espera que o nosso próximo governante encare esse problema", disse o pesquisador, que entende que a responsabilidade do País é ainda maior por ser um espelho para nações menores como, por exemplo, as da África, as quais compartilham a características de se destacarem pela biodiversidade.
______________________________________
Fonte: Estadão
Blog desenvolvido por Haendel Dantas | Blog O Mipibuense 2009