Por Vicente Serejo
Ora, ora, e eu que imaginava já ter guardado nos salões da alma tudo quando seria doloroso esquecer, de repente descubro na página de um jornal português um Mercado da Saudade. Cheio de certeza, pensei comigo: bobagem. O que cada coisa possa dizer de mim, já tenho. Dos meus teréns, modéstia à parte, cuido eu. Como se tudo coubesse num sótão, nem que a sua noite tenha a iluminar apenas a chama bruxuleante de uma velha lamparina a projetar nas paredes as réstias do passado.
Ninguém, Senhor Redator, se desfaz tão facilmente da vida que passou. Há em cada coisa um pouco daquela dor existencial das coisas que passaram como avisou Camões. Esses pedaços de dor vão ficando aqui e ali. São os grãos da memória. Em Braga, leio no Jornal de Notícias, de Lisboa, um mercado cuidou de ter nas suas prateleiras comidas, bebidas e objetos tocados de uma certa e doce nostalgia. É lá que os portugueses matam a saudade de tudo que um dia a noite dos tempos devorou.
Em Lisboa, no fim da pequena rua do lado da velha e bela Livraria Bertrand, conheci há uns cinco anos uma loja assim. E fiquei freguês. Não digo de todos os anos. Só quando posso, de vez em quando. Lá comprei uma tabuada igual à da infância, uns poucos livros e as réplicas perfeitas das três andorinhas do famoso Bordalo e que minha avó tinha no terraço da sua casinha de duas arcadas, ali na Rua Potengi. Como se voassem no céu branco da parede, elas azuis, hoje azulando na saudade.
Trouxe exatamente três, Senhor Redator, em três tamanhos diferentes, e para que repitam aqui entre prateleiras de livros velhos o mesmo vôo do meu tempo de menino, quando cheguei de Macau para estudar na capital. Do lado, tinha o ABC com a sua sede moderníssima, seu chão em quadrados pretos e brancos, suas festas elegantes e inacessíveis, cercada de taças e troféus. O ABC dos filmes de Tarzan, com Johnny Weissmuller com aqueles seus gritos na selva cheia de feras perigosíssimas.
Os portugueses, a exemplo da nossa brasilidade, falam de sua portugalidade, uma expressão da afetividade lusa que não conhecia, criada para designar o gosto e a saudade de tudo quanto pode ser um retorno ao ontem. O Mercado da Saudade não vende ícones de tristeza. Pelo contrário. É tanto que seu fundador tem só 34 anos e nada viveu de tão antigo assim. Mas ele, que é design, percebeu que a saudade portuguesa não é triste. É alegre e é essa alegria de rever que alimenta seu mercado.
Por isso fui lendo e compreendendo esse mercado com nome de saudade. Não para vendê-la – a saudade é algo muito pessoal e intransferível. Mas a saudade como leitmotiv. Como força de uma inspiração que de repente se traduz num cheiro de um velho perfume ou um antigo sabonete que na infância perfumava a sala de jantar. Por isso a minha tabuada vive aqui, exposta a quem desejar revê-la, como era na infância. E da parede, um dia, as minhas três andorinhas voarão. Como antigamente.
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