A propósito de meu último artigo no DC , sobre a corrupção dos valores, neste momento em que as atenções se voltam para os efeitos das sentenças do STF nos nossos costumes políticos, faltou comentar o índice de percepção da corrupção elaborado anualmente pela Transparency International – uma vez que coloca o Brasil como tendo caído quatro posições no ranking entre 182 países pesquisados de 2010 a 2011.
Em sentido oposto, os editoriais da grande mídia anunciam o início do fim da cultura da impunidade, enaltecendo nosso herói nacional Joaquim Barbosa, que enfrentou com destemor "os dragões da corrupção". Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
Com relação ao índice da percepção da corrupção, vamos a uma consideração preliminar: será que os mais de 3.000 entrevistados que alimentam o índice têm de fato consciência crítica sobre o fenômeno da corrupção sistêmica dos próprios valores universais da moral pública, e que antecedem a corrupção política?
Analisando como a mídia aborda o fenômeno, desconfio que não, uma vez que ela é a grande fornecedora de significados para a construção do imaginário social. Sobretudo agora, nas matérias de cobertura do Mensalão, não vejo a mídia explicitando a conexão causal entre os dois universos – da corrupção dos valores morais no âmbito da produção da cultura como um todo e no de sua expressão política propriamente dita. Pois a má conduta no trânsito pelo cidadão comum, por exemplo, e o desvio do dinheiro público pelos titulares de mandatos e agentes da lei se alimentam da mesma fonte, que é a corrupção dos valores morais no imaginário social de cada um deles.
Tenho pensado na hipótese de que somos "campeões de impunidade", como a mídia hiperboliza, por que a própria mídia alimenta esta percepção, ao repetir ad nauseam a má conduta política de nossos governantes. E na crença de que cumpre seu papel do dog watch journalism , mas criando colateralmente o fenômeno de consenso de que "nada adianta fazer contra um traço atávico de nossa cultura"; de que " cada povo tem o governo que merece", ou que " este é o (mau) caráter do brasileiro".
Chego, então, à hipótese de que aquilo que a Transparência Internacional chama de "percepção da corrupção" é, na verdade, a percepção oferecida pela mídia, cobrindo as elites detentoras de poder político diretamente no setor público, ou indiretamente no setor privado empresarial.
Já a boa conduta política da maioria dos cidadãos de bem, embora em maior número e frequência, raramente é atendida pela mídia, que se nega por puro preconceito a cumprir sua missão de civic journalism. Tenho dito, aliás, que a mídia no Brasil confunde o termo com cinic journalism, uma vez que ratifica o poder imperial do poder Executivo em detrimento direto de um Legislativo que só cobre desmoralizado. E ignora solenemente o cotidiano do Judiciário, até por que se julga juiz que condena, promotor que acusa e polícia que investiga.
Junte-se a isso o fato de que o próprio Poder Judiciário brasileiro ainda resiste à transparência pública e que o sistema educacional se limita, precariamente, à função de aprendizagem e transmissão do conhecimento e nunca de valores morais. Sem falar da desconstrução, na sociedade contemporânea, da estrutura familiar e religiosa. Só nos resta a sensação universal de impunidade e a percepção da corrupção como uma fatalidade civilizatória.
Se a própria TI, na metodologia de sua pesquisa de percepção da corrupção, desconsidera as diferenças estruturais da cultura institucional e política de cada país que monitora, contra quem e contra o que estaremos combatendo, afinal?
Se não pelas diferenças fundamentais de respeito aos valores universais da tradição moral – como a vida, a liberdade, a justiça e a propriedade – pelos gestores institucionais do sistema de produção simbólica do imaginário social (como a própria mídia, a educação, a justiça, a família e a religião), como explicar índices tão contraditórios entre países de origem territorial e cultural semelhante?
É o caso da China (3.6) e Hong Kong (8.4) ou Taiwan (6.1); da Coreia do Norte (1.0) e Coreia do Sul (5.4); do Iraque (1.8) e Israel (5.8) ou Venezuela (1.9) e Chile (7.2). Ou mesmo da Alemanha (8.0) e Itália (3.9) – embora regiões e culturas semelhantes a percepção da corrupção não sejam apenas um dado a marcar opostos costumes políticos, mas também um dado da percepção dos valores universais da vida, da justiça, da liberdade e da propriedade e das instituições de Estado que os garantem como direitos fundamentais do cidadão.
Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão. jorge@avozdocidadao.com.br
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Fonte: Diário do Comércio
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