Em entrevista a revista jesuita italiana 'La civilta cattolica', Francisco disse que a Igreja deve encontrar um novo equilíbrio
O
papa Francisco abriu a Igreja Católica para homossexuais, divorciados e para as
mulheres que fizeram o aborto. "A religião tem o direito de exprimir sua
opinião própria a serviço das pessoas, mas Deus na criação nos fez livres: a
ingerência espiritual na vida das pessoas não é possível", disse o papa em
entrevista ao padre Antonio Spadaro, feita em agosto e publicada nesta
quinta-feira, 19, pela revista jesuíta italianaLa Civiltà Cattolica.
"Não podemos insistir somente sobre as questões ligadas ao aborto,
matrimônio homossexual e ao uso de contraceptivos. Isso não é possível." A
reforma mais importante para ele, não é, pois, a administrativa da Igreja. Mas
a que deve abrir a Igreja aos feridos. "Eu vejo a Igreja como um hospital
de campanha depois de uma batalha." Para Francisco, a Igreja deve
"encontrar uma novo equilíbrio". "De outra forma até o edifício
moral da Igreja corre risco de cair como uma castelo de cartas e de perder a
frescura e o perfume do Evangelho."
Em julho, no voo de
volta a Roma, depois de participar da Jornada Mundial da Juventude no Rio, o
papa já havia surpreendido ao afirmar que o catecismo da
Igreja "diz que eles (gays) não devem ser discriminados por causa
disso, mas devem ser integrados na sociedade." "Quem sou eu para
julgar os gays", afirmou então.
A seguir os
principais trechos da entrevista.
Sobre a Igreja. "Essa
Igreja com a qual devemos conviver é a casa de todos e não a pequena capela que
pode conter somente um grupinho de pessoas selecionadas. Não podemos reduzir o
seio da Igreja universal ao ninho protetor da nossa mediocridade. E a Igreja é
Mãe. A Igreja é fecunda, deve sê-lo. Veja, quando me dou conta dos
comportamentos negativos dos ministros da Igreja ou dos consagrados ou consagrantes,
a primeira coisa que me vem à cabeça é eis um solteirão, eis uma solteirona.
Não são nem pais, nem mães. Não foram capazes da dar vida. Em vez disso, por
exemplo, quando leio a vida dos missionários salesianos que partiram para a
Patagônia, leio histórias de vida, de fecundidade".
Do que a Igreja mais
precisa agora? Eu vejo com muita clareza que a coisa que a
Igreja mais tem necessidade agora é a capacidade de curar feridas e de aquecer
o coração dos fiéis, avizinhar-se, aproximar-se. Eu vejo a Igreja como um
hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido
grave se o seu colesterol ou a sua glicose são altos. Se deve curar as suas
feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as
feridas. E é necessário começar de baixo. A Igreja, às vezes, fechou-se em
torno de pequenas coisas, pequenos preceitos. A coisa mais importante é, em vez
disso, o primeiro anúncio: Jesus Cristo nos salvou!. E os ministros da Igreja
devem ser antes de tudo ministros da misericórdia. O confessor, por exemplo,
corre sempre o perigo de ser muito rigoroso ou leniente. Nenhum dos dois é
misericordioso porque nenhum deles se encarrega verdadeiramente das pessoas. As
pessoas devem ser acompanhadas, e as feridas curadas."
Reformas na Igreja. As reformas
organizacionais e administrativas são secundárias, isto é, vêm depois. A
primeira reforma deve ser a do comportamento. Os ministros do Evangelho devem
ser pessoas capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com
eles, de saber dialogar e de descer em sua noite, em sua escuridão sem
perde-se. O povo de Deus precisa de pastores e não funcionários ou clérigos de
Estado. O que importa é saber como estamos tratando o povo de Deus. Em vez de
ser somente uma Igreja que acolhe e que recebe mantendo as portas abertas,
procuremos ser uma Igreja que encontre novos caminhos, capaz de sair de si
mesma e ir em direção de quem não a frequenta, de quem se foi ou que se tornou
indiferente. Quem se foi, às vezes partiu por razões que, se bem compreendidas
e avaliadas, podem levar a um retorno. Mas é necessário audácia e coragem.
Homossexuais,
divorciados e aborto. Devemos anunciar o Evangelho em todos
os caminhos, predicando a boa nova do Reino de Deus e curando com a nossa
predicação todo tipo de ferida e de doença. Em Buenos Aires, recebia cartas de
pessoas homossexuais, que são ‘feridas sociais’ porque me dizem que sentem como
se a Igreja os tenha condenado para sempre. Mas a Igreja não quer fazer isso.
Durante o voo de retorno do Rio de Janeiro eu disse o que diz o Catecismo. A
religião tem o direito de exprimir sua opinião própria a serviço das pessoas,
mas Deus na criação nos fez livres: a ingerência espiritual na vida das pessoas
não é possível. Uma vez uma pessoa, de forma provocadora, me perguntou se eu
aprovava a homossexualidade. Eu então respondi-lhe com uma outra pergunta:
‘Diga-me: Deus quando olha uma pessoa homossexual aprova a sua existência com
afeto ou a repele condenando-a?’ É preciso sempre considerar a pessoa. Aqui
entramos no mistério do homem. Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos
acompanhá-las a partir da sua condição. É preciso acompanhá-las na
misericórdia. Quando isso acontece, o Espírito Santo inspira o sacerdote a
dizer coisas mais justas.
Esta é a grandeza da
Confissão: o fato de avaliar caso a caso e poder discernir qual é a melhor
coisa a fazer para uma pessoa que procura Deus e a sua graça. O confessionário
não é uma sala de tortura, mas o lugar da misericórdia no qual o Senhor nos
estimula a fazer o melhor que podemos. Penso também na situação das mulheres
que tiveram sobre os ombros um matrimônio falido no qual até mesmo tenham
abortado. Pois essa mulher se casou novamente e agora está serena, com cinco
filhos. O aborto pesa sobre ela enormemente e ela está sinceramente
arrependida. Ela gostaria de ir adiante na vida cristã. O que faz o confessor?
Não podemos insistir
somente sobre as questões ligadas ao aborto, matrimônio homossexual e ao uso de
contraceptivos. Isso não é possível. Eu não falei muito dessas coisas e isso me
foi recriminado. Mas quando se fala disso, é necessário falar em um contexto. O
parecer da Igreja, de resto, todos conhecem, e eu sou filho da Igreja, mas não
é possível falar disso continuamente.
Os ensinamentos,
tanto dogmáticos quanto morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral
missionária não é obcecada da transmissão desarticulada de uma multidão de
doutrinas que se quer impor com insistência. O anúncio de tipo missionário se
concentra sobre o essencial, sobre o necessário, que é também o que apaixona e
atrai mais, que faz arder o nosso coração, como aos discípulos de Emaús.
Devemos, pois, encontrar uma novo equilíbrio, de outra forma até o edifício
moral da Igreja corre risco de cair como uma castelo de cartas, de perder a sua
frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples,
profunda e irradiante. E é dessa proposta que depois devem vir os ensinamentos
morais.
Digo isso pensando à
predicação e aos conteúdos da nossa predicação. Uma bela homilia deve começar
com o primeiro anúncio, com o anúncio da salvação. Não há nada de mais sólido,
profundo e seguro nesse anúncio. Depois se deve fazer a catequese. E, no fim,
pode-se chegar a uma consequência moral. Mas o anúncio do amor salvífico de
Cristo é prévio à obrigação moral e religiosa. Na maioria das vezes parece
prevalecer o inverso. A homilia deve calibrar o avizinhar-se e a capacidade de
encontro de um pastor com seu povo porque quem predica deve reconhecer o
coração da sua comunidade para procurar onde é vivo e ardente o desejo de Deus.
A mensagem evangélica não se pode reduzir, pois, a alguns de seus aspectos.
Ainda que importantes, mas que sozinhos não manifestam o coração do ensinamento
de Cristo
Quem é o papa
Francisco? Não sei qual pode ser a definição mais justa... Eu
sou um pecador. Esta é a definição mais justa. E não é um modo de dizer, um
gênero literário. Sou um pecador. Sim, posso dizer que sou um pouco esperto,
sei me mover, mas é verdade também que sou ingênuo. Sim, mas a síntese melhor,
aquela que me vem do mais fundo de mim e que a sinto mais verdadeira é
exatamente essa: ‘Sou um pecador do qual o Senhor cuidou’. Eu sou alguém que é
cuidado e observado pelo Senhor. O meu moto Miserando atque eligendo (Olhou-o
com misericórdia e o acolheu), escutei-o sempre como algo verdadeiro para mim.
O gerúndio latino miserando é intraduzível em italiano ou espanhol. A mim me
agrada traduzi-lo com um outro gerúndio que não existe: misericordiando. Eu não
conheço Roma, conheço pouca coisa. Entre essas poucas coisas está (a igreja)
Santa Maria Maior, onde ia sempre... São Pedro. Quando me hospedava em Roma,
costumava ficar na Via della Scofra. Da li, visitava comumente a Igreja de São
Luis dos Franceses e ia contemplar o quadro da vocação de São Mateus, de
Caravaggio. Aquele dedo de Jesus assim... Em direção de Mateus. Assim sou eu.
Assim me sinto. Como Mateus. É o gesto de Mateus que me toca. Ele segura o seu
dinheiro como a dizer: ‘Não, não eu! Não, esse dinheiro é meu!’ E isso é o que
eu disse quando me perguntaram se aceitava a minha eleição como pontífice.
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Fonte: Estadão
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