A eleição do pastor e
deputado (PSC-SP) Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias significa mais do que a escolha de alguém cujas “ideias e
convicções” caminham na contramão das prerrogativas, valores e propósitos de
dita Comissão. Há algo de mais grave e sintomático nesse lamentável
episódio.
É certo que Marco Feliciano representa o
contrário, o negativo, de tudo o que os Direitos Humanos personificam. Aliás, o
deputado
personifica, na verdade, tudo aquilo que os Direitos Humanos deve combater; a
intolerância, o racismo, a homofobia, opressão às minorias, a ignorância, o
preconceito, a estupidez, o fanatismo.
A Comissão de Direitos Humanos “desumaniza-se”
quando ela tem no seu principal responsável alguém que afirma que “os africanos
descendem de uma linhagem amaldiçoada de Noé”. Ela estupidifica-se quando o seu
líder é alguém que defende que a “Aids é o câncer gay” e que a palavra
“homossexual deveria ser abolida do dicionário, já que se nasce homem ou
mulher”. E, por fim, ela perde toda sua legitimidade e credibilidade quando é
presidida por alguém que luta em seu mandato para restringir direitos em vez de
afirmá-los ou ampliá-los.
Há séculos, homens e mulheres, movimentos sociais
e intelectuais, lutam para instituir e fomentar valores como tolerância,
reconhecimento das diferenças, respeito pela dignidade e diversidade humana,
igualdade de direitos, liberdade, ampliação da cidadania etc.. Esses princípios
são mais do que belas palavras e conceitos. Eles carregam vidas, energias,
sangue e pensamentos que foram dedicados ao combate das injustiças e opressões e
a criar um outro tipo de sociedade e de mentalidade entre as pessoas. É evidente
que as posições do deputado Marco Feliciano são um insulto ao patrimônio
simbólico, normativo e histórico que formou os Direitos Humanos. Mas, se
quisermos entender as implicações de sua eleição, devemos ir além da indignação
moral que tal episódio suscita. Vamos a algumas delas.
O fato incompreensível de que nenhuma das
contradições mencionadas impediu a eleição de Marco Feliciano é sintomático
acerca deste espectro sinistro que avança entre nós, o fundamentalismo
religioso. A confirmação do deputado do PSC como presidente da Comissão de
Direitos Humanos representa mais do que um ultraje aos valores e propósitos
básicos das Declarações dos Direitos do Homem e dos Direitos Humanos; significa
a conquista pelo fundamentalismo religioso do que deveria ser uma das “bases” ou
“trincheira” de enfrentamento contra este mesmo fundamentalismo. Trata-se,
portanto, de um retrocesso civilizatório e de uma derrota política na luta
contra o preconceito, a intolerância e o obscurantismo que ainda nos assombra
nos mais diversos espaços sociais.
O fundamentalismo religioso cresce, avança e se
institucionaliza; prolonga-se dos púlpitos e ganha os programas de televisão, a
internet, as tribunas parlamentares e, agora, até mesmo órgãos que, por
princípio, deveriam combatê-lo. A eleição de Marco Feliciano é um indicativo do
crescimento da força política de posições religiosas radicais, ou,
em outras palavras, do fundamentalismo religioso como ator político no
Brasil.
Este arremate de espaços estratégicos para a
defesa dos objetivos conservadores é perfeitamente legítimo numa democracia,
que, como tal, deve acolher o conflito e o contraditório. Porém, como ensina
pensadores políticos como Alexis Tocqueville e Claude Lefort, a democracia
carrega perigos e ambiguidades que podem se voltar contra ela mesma,
enfraquecendo-a, degenerando-a em tiranias e despotismos. A vitória do pastor
Marco Feliciano é, também, significativa acerca dessas ambiguidades a que a
democracia está sujeita.
Se, por um lado, temos essa implicação óbvia do
avanço e fortalecimento do fundamentalismo religioso como ator político, por
outro, temos este outro aspecto mais opaco, que é as contradições que a
democracia pode suscitar enquanto forças que, à médio prazo, podem se voltar
contra ela mesma. É inegável que, de um ponto de vista formal, a eleição de
Feliciano é legítima. Foi eleito com legitimidade, respeitando todas as regras e
procedimentos. Formalmente não há nada o que possamos criticar. No entanto,
democracia é mais do que um conjunto de métodos e procedimentos de decisão. Ela
é, também, um conjunto de concepções éticas e políticas e princípios normativos
sem os quais as regras e os procedimentos jurídico-institucionais seriam apenas
um esqueleto sem carne e sangue.
Com a regra da maioria, a liberdade de expressão
e a liberdade de crença, o deputado do PSC-SP busca blindar e assegurar a
legitimidade do seu preconceito e intolerância. Valendo-se, de uma maneira
cínica, das regras do jogo como se fossem escudos para a promoção do ódio,
Feliciano alça o preconceito e a ignorância à condição de exercício da liberdade
e a intolerância em exercício de opinião.
Não é apenas o desrespeito as regras do jogo
democrático que constitui ameaça à ordem democrática mas igualmente o
desrespeito aos seus fundamentos simbólicos e normativos, mesmo que sancionado e
autorizado segundo a letra fria da lei. As diversas manifestações odiosas de
Feliciano sobre a homossexualidade e as religiões de matriz afro são a prova
cabal do quanto o deputado cultiva convicções e posturas frontalmente contrários
à igualdade, à dignidade, à inclusão e proteção da cidadania e liberdade das
minorias. A promoção da discriminação e do preconceito, mesmo que acobertados
com o manto sagrado das regras do jogo democrático, só pode lesar e enfraquecer
a democracia, pois conduz a uma perigosa tirania da intolerância.
Confundir indução de discriminação, promoção da
intolerância e pregação da ignorância com liberdade de expressão, de crença e
opinião significa permitir que conquistas e direitos fundamentais da democracia
se convertam em forças contrárias e nocivas à própria democracia. E se tal
confusão não leva de repente a tirania pela violência, pelo golpe no campo das
regras e procedimentos, conduz progressivamente a ele pelos precedentes que abre
e pelos hábitos que gera. A sociedade torna-se mais refratária às políticas de
reconhecimento e ao cultivo de formas igualitárias de convívio social e mais
suscetível à intolerância e às formas de convivência social apoiadas em estigmas
e exclusões.
Nesse sentido, a eleição de Marco Feliciano
constitui uma ameaça bem mais ampla do que contra um grupo de pessoas específico
contra o qual o pastor destila o seu costumeiro ódio e preconceito. A tirania da
intolerância presente em suas posturas e pronunciamentos ameaça à própria
democracia como uma forma de sociedade fundamentada na igualdade de status, na
liberdade e criação e proteção permanente de direitos.
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*Alyson Freire - Professor de Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências
Sociais - UFRN. Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar.
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