quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Chega de Excelências, senhores!

Numa verdadeira República, a qual o Brasil há de fundar, o único tratamento formal possível será o de "senhor", da nossa tradição popular.

Por Fausto Rodrigues de Lima*

Em 13/6, um juiz do Paraná desmarcou uma audiência porque um trabalhador rural compareceu ao fórum de chinelos, conduta considerada "incompatível com a dignidade do Poder Judiciário".
Não muito antes, policiais do Distrito Federal fizeram requerimento para que fossem tratados por "Excelência", tal qual promotores e juízes.
Há alguns meses, foi noticiado que outro juiz, este do Rio de Janeiro, entrou com uma ação judicial para obrigar o porteiro de seu condomínio residencial a tratar-lhe por "doutor".
Tais fatos poderiam apenas soar como anedotas ridículas da necessidade humana de criar (e pertencer a) castas privilegiadas.
No entanto, os palácios de mármore e vidro da Justiça, os altares erguidos nas salas de audiência para juízes e promotores e o tratamento "Excelentíssimo" dispensado às altas autoridades são resquícios diretos da mal resolvida proclamação da República brasileira, que manteve privilégios monárquicos aos detentores do poder.
Com efeito, os nobres do Império compravam títulos nobiliárquicos a peso de ouro para que, na qualidade de barões e duques, pudessem se aproximar da majestade imperial e divina da família real.
Com a extinção da monarquia, a tradição foi mantida por lei, impondo-se diferenciado tratamento aos "escolhidos", como se a respeitabilidade dos cargos públicos pudesse, numa república, ser medida pela "excelência" do pronome de tratamento.
Os demais, que deveriam só ser cidadãos, mantiveram a única qualidade que sempre lhes coube: a de súditos (não poderia ser diferente, já que a proclamação não passou de um movimento da elite, sem nenhuma influência ou participação popular). Por isso, muitas Excelências exigem tratamento diferenciado também em sua vida privada, no estilo das famosas "carteiradas", sempre precedidas da intimidatória pergunta: "Você sabe com quem está falando?".
É fato que a arrogância humana não seduz apenas os mandarins estatais.
A seleta casta universitária e religiosa mantém igualmente a tradição monárquica das magnificências, santidades, eminências e reverências. Tem até o "Vossa Excelência Reverendíssima" (esse é o cara!). Somos, assim, uma República com espírito monárquico.
As Excelências, para se diferenciarem dos mortais, ornam-se com imponentes becas e togas, cujo figurino é baseado nas majestáticas vestimentas reais do passado. Para comparecer à sua presença, o súdito deve se vestir convenientemente. Se não tiver dinheiro para isso, que coma brioches, como sugeriu a rainha Maria Antonieta aos esfomeados que não podiam comprar pão na França do século 18.
Enquanto isso, barões sangram os cofres públicos impunemente.
Caso flagrados, por acaso ou por alguma investigação corajosa, trata a Justiça de soltá-los imediatamente, pois pertencem ao mesmo clã nobre (não raro, magistrados da alta cúpula judiciária são nomeados pelo baronato).
Os sapatos caros dos corruptos têm livre trânsito nos palácios judiciais, com seus advogados persuasivos (muitos deles são filhos dos próprios julgadores, garantindo-lhes uma promiscuidade hereditária), enquanto os chinelos dos trabalhadores honestos são barrados. Eles, os chinelos, são apenas súditos. O único estabelecimento estatal digno deles é a prisão, local em que proliferam.
A tradição monárquica ainda está longe de sucumbir, pois é respaldada pelo estilo contemporâneo do liberal-consumismo, que valoriza as pessoas pelo que têm, e não pelo que são.
Por isso, após quase 120 anos da proclamação da República, ainda é tão difícil perceber que o respeito devido às autoridades devia ser apenas conseqüência do equilíbrio e bom senso dos que exercem o poder; que as honrarias oficiais só servem para esconder os ineptos; que, quanto mais incompetente, mais se busca reconhecimentos artificiais etc.
Numa verdadeira República, que o Brasil ainda há de um dia fundar, o único tratamento formal possível, desde o presidente da nação ao mais humilde trabalhador (ou desempregado), será o de "senhor", da nossa tradição popular.
Os detentores do poder, em vez de ostentar títulos ridículos, terão o tratamento respeitoso de servidor público, que o são. E que sejam exonerados se não forem excelentes!
Seus verdadeiros chefes, cidadãos com ou sem chinelos, legítimos financiadores de seus salários, terão a dignidade promovida com respeito e reverência, como determina o contrato firmado pela sociedade na Constituição da República.
Abaixo as Excelências!
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*FAUSTO RODRIGUES DE LIMA, 36, é promotor de Justiça do Distrito Federal.
Fonte: JusBrasil

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terça-feira, 12 de agosto de 2014

A lei penal é como a serpente, só pica os descalços

PAR DE CHINELOS E O STF
Por Luiz Flávio Gomes*
Em abril/14 o STF julgou um “ladrão de galinha”. Agora vai se deparar com um pé descalço cujo sonho era se transformar em um “pé de chinelo” (HC 123.108). A frase de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel (e aqui difundida por Lenio Streck) é paradigmática: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”. Isso vale, em grande medida, no Brasil, para a lei penal (em regra, só pica os descalços).
O Judiciário brasileiro (tanto nesse caso do par de chinelos como em outros, exemplificativamente o da subtração de duas galinhas de São João de Nepomuceno-MG, onde ficou vencido o ministro Marco Aurélio que não concedia o HC para o “ladrão de galinha”), depois de dezenas de anos em contato e experiência com a degeneração moral da sociedade e das instituições, degradação essa promovida pela prazerosa vulgaridade do homo democraticus (Tocqueville e Gomá Lanzón), nos seus surtos de desconexão absoluta da realidade, vez por outra, delibera se desligar do mundo dos humanos. Transforma-se, nesses momentos, num avatar.
Como já não tem contato com os humanos (os terráqueos), concede-se licença para se afastar do mundo tangível e de se expressar numa linguagem metafísica, absolutamente inacessível à quase absoluta totalidade dos habitantes do planeta azul. Não faz isso por se julgar superior aos mortais, certamente, sim, por se entender diferente (outro mundo, outro planeta, outra lógica, outra civilização).
habeas corpus do “pé descalço” foi denegado pelo STJ (6ª Turma) com base nos seguintes argumentos (prestem atenção na linguagem): “É condição sine qua non ao conhecimento do especial que tenham sido ventilados, no contexto do acórdão objurgado, os dispositivos legais indicados como malferidos na formulação recursal. Inteligência dos enunciados 211⁄STJ, 282 e 356⁄STF.”
Tudo isso é fruto de uma inteligência das súmulas 211, 282 e 356 do STF. Que pena que essa inteligência dos avatares não tem nada a ver com o ideal terráqueo da Justiça ao alcance de todos (na forma e na substância).
A ementa do julgado (6ª Turma) prossegue: “Possuindo o dispositivo de lei indicado como violado comando legal dissociado das razões recursais a ele relacionadas (sic), resta impossibilitada a compreensão da controvérsia arguida nos autos, ante a deficiência na fundamentação recursal. Incidência do enunciado 284 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.”
Claro que, aqui na Terra, para “compreender a controvérsia” e determinar o arquivamento imediato dos autos relacionados à subtração de um par de chinelos (devolvido, diga-se de passagem) só dependemos de uma caneta e de uma cabeça terráquea, dotada de humanidade e sensibilidade. Nada mais que isso.
Para a aplicação ou não do principio da insignificância (continua a ementa), “devem ser analisadas as circunstâncias específicas do caso concreto, o que esbarra na vedação do enunciado 7 da Súmula desta Corte.”
Quais circunstâncias específicas mais são necessárias além do fato de tratar-se de um par de chinelos de R$ 16 reais (devolvido) subtraído por um “pé descalço”, que foi condenado a um ano de prisão em regime semiaberto?
Para a 6ª Turma o arquivamento desse caso é muito relevante por possuir caráter constitucional. E a “A análise de matéria constitucional não é de competência desta Corte, mas sim do Supremo Tribunal Federal, por expressa determinação da Constituição Federal
Seja de que natureza for, aqui na Terra manda a sensibilidade humana que a subtração de um par de chinelos de R$ 16 reais deve ser arquivada prontamente, por meio de um habeas corpus de ofício. A matéria constitucional aqui existente é a dignidade humana, a liberdade, o Estado de direito, a proporcionalidade, a razoabilidade etc. Em síntese, tudo que os avatares desconhecem.
Há momentos que dá vontade de copiar, aqui no Brasil, aquela criança que, no Uruguai, no tempo da ditadura (criticada por Eduardo Galeano), pediu a sua mãe que a levasse de volta para o hospital porque ela queria “desnascer”!
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*Luiz Flávio Gomes -  Professor, Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Fonte: JusBrasil

DISQUE DENÚNCIA ELEITORAL 2014


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Solução final da questão Palestina

Berenice Bento*

Há imagens que ficam grudadas em nossas retinas.  Não nos abandonam. Ao longo dos últimos dias, os corpos de crianças, mulheres e civis palestinos assassinados pelo exército de Israel, o grito de dor das pessoas em volta de minúsculos corpos, fez com a imagem saísse da retina e fosse para a alma. Às vezes choramos juntos, nos solidarizamos com a dor do outro que está tão longe de nós e nos perguntamos: o que é isso? É uma guerra, dirão alguns.

Este foi o tom da resposta do Sr. Yigal Palmor, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, ao defender o legítimo direito de Israel a se proteger dos ataques do Hamas. Ele afirmou que se Israel não tivesse desenvolvido um eficiente sistema antimísseis, de ataque e defesa, com certeza estaria convivendo com corpos de israelitas nas ruas de Tel Aviv.

Depois de sua defesa, eu passei a ter certeza daquilo que muitos já sabem. Israel está praticando crime contra a humanidade. Estamos assistindo, nos sofás de nossas casas, a uma política deliberada de extermínio de um povo.  Ora, se Israel tem este aparato bélico tão preciso, que consegue interceptar os foguetes do Hamas, por que não se limita a matar os soldados? A contabilidade: quase de 1500 palestinos assassinados.  Do lado de Israel: 57 soldados.

Por mais que pareça estranho, existe uma ética na guerra que se fundamenta em não assassinar civis. Então, concordando com o Sr. Yigal Palmor, o Estado de Israel é eficiente em seu objetivo: eliminar o povo Palestino porque para eles cada Palestino é um terrorista de fato ou em potencial. Como apontou uma parlamentar israelense, o objetivo de Israel deve ser a eliminação total de mães e filhos palestinos, para evitar a propagação deste “serpentário”.

A professora de Língua e Educação na Universidade Hebraica de Jerusalém, Nurit Peled-Elhanan, em sua pesquisa sobre os livros didáticos de Israel, mostrou como o processo de desumanização dos palestinos acontece nos bancos escolares. As cores escolhidas, os cenários, os mapas, a linguagem tudo é feito para construir um Outro que por seu absoluto atraso e selvageria não merece coabitar o mesmo espaço, tampouco viver.

O drama do povo palestino atualiza um léxico vivenciado em escala global durante a II Grande Guerra Mundial: exílio, campo de refugiados, muro, utilização de armas de extermínio em massa (como o fósforo branco), desrespeito às Leis Internacionais (Convenções de Genebra), genocídio.

Reconhecer o caráter nazista do Estado de Israel é completamente diferente de assumir qualquer posição antissemita, principalmente quando lembramos que judeus se somam, em diversas partes do mundo, à luta pelo direito a autodeterminação do povo Palestino. De judeus mais ilustres aos mais desconhecidos há uma luta interna entre concepções de judaísmo e de Estado que não podem ser secundarizadas e que remontam à fundação do próprio Sionismo, base de sustentação do Estado de Israel.

Na última manifestação de rua que aconteceu aqui em New York em defesa da Palestina, eu estava com duas bandeiras da Palestina. Um judeu se aproximou de mim e me perguntou se eu poderia compartilhar. Outro, chegou com um cartaz: “Chega de mortes de inocentes! Abaixo o Sionismo!”  E assim, centenas de judeus caminharam juntos com cristãos, ateus, muçulmanos, budistas pelas ruas da cidade, gritando a pleno pulmões: Palestina Livre!

O movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) tem se mobilizado para construir uma rede de solidariedade internacional em torno de ações concretas contra o Estado de Israel, como por exemplo, o fim de relações com pesquisadores de universidades israelenses, não comercialização de marcas  e produtos que compactuam com  a política de extermínio dos palestinos, fim de relações diplomáticas e comerciais.  O BDS é inspirado na experiência de solidariedade internacional bem sucedida em torno do fim do apartheid sul-africano.

É preciso urgência para fazer Israel parar no seu projeto, até aqui exitoso, de solução final: eliminação total do povo palestino.
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* Professora da UFRN. Pós-doutoranda na CUNY/EUA (CNPq). Autora de vários livros.
Fonte: http://www.sxpolitics.org/pt/?p=4275
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