As histórias se repetiam. Eram incrivelmente iguais.
Ela está perto dos quarenta anos e já tem sua prole; mais uma criança iria exigir-lhe forças de que não dispunha; teria que parar de trabalhar nos primeiros meses e isso estava absolutamente fora de cogitação. A vida está cara e ela não dispõe de forças e tempo para correr atrás de uma pensão alimentícia miserável e sujeita, que levaria muito tempo para obter e que de nada adiantaria em sua vida.
Assim que soube estava grávida, logo nas primeiras semanas, procurou pelo pai, que a desdenhou. Humilhada, ela tentou alguma coisa, não sabia ao certo o que pedir na Defensoria Pública. Filas, fichas, a distância de sua casa, o tempo infinito para o exame de DNA, seu caçula sempre doentinho, as formas tortuosas todas que vida assume, enfim, deixaram-na completamente só.
Uma amiga, a quem encontrava sempre no ônibus lhe disse de uma mulher, lá no fim do mundo, que cobrava cinqüenta reais para fazer um aborto. Era perto do hospital e se alguma coisa saísse errada, daria tempo de buscar socorro. Cinqüenta reais é a metade da faxina. Morreu de medo, mas não viu outra forma.
Dona Marlene, nome fictício, a recebeu em sua casa; morava em uma casa muito pobre e atendia suas mulheres num quartinho do fundo, discretamente protegido. Uma mesa ginecológica velha, uns espeques que lavava com detergente. Tentou até tranquilizá-la, fazia aquilo todos os dias, era experiente. Seu plano era tão simples quanto inconsequente: com o espeque, provocaria um cutucaria o colo do útero, causando um sangramento. Seria o bastante para fazer a curetagem no hospital ali perto. Cinqüenta reais.
A dor foi lancinante e começou a sangrar muito mais do que imaginava e logo sentiu as pernas moles e tonturas; a mulher a expulsava aos gritos e um homem que não saberia descrever a levou até o ponto de ônibus. Não soube como chegou ao hospital, onde, em estado de confusão mental, acabou contando que fizera um aborto.
Voltou pra casa no mesmo dia e passou a noite em claro. Aflita.
Ou, assim que soube que estava grávida e depois de tentar em vão o apoio do parceiro, ela adquire comprimidos, que comprou em um camelô. Vem do Paraguai, ocitotec, que há muitos anos era e ainda é um poderoso e imediato calmante estomacal, mas que tem efeitos abortivos. O que se vende é uma espécie de kit. Há um site na internet, de direitos humanos das mulheres, que ensina como usar o misoprostal (Saiba mais). Não recomenda, porque é de baixa eficiência, mas também atua de forma semelhante, com sangramento e fortíssimas contrações. Custa barato, menos de cinquenta reais.
Nas primeiras semanas de gestação, o sistema nervoso central ainda não se formou e esse fato muda completamente a história.
A Lei 9.437/97 que regula a doação de órgãos funda premissas novas no Brasil, com o conceito de morte cerebral. A inexistência do sistema nervoso central, reconhecida por uma junta médica, transforma a pessoa, sempre um sujeito de direito, em objeto de direito, única forma de justificar a doação. É chocante à nossa moral conservadora e somente se retiram órgãos vitais porque não mais existe vida, mas tão somente uma atividade fisiológica.
Se não é vida humana, porque não existe sistema nervoso central, a retirada de órgãos depende apenas da decisão dos familiares – por uma idiossincrasia à brasileira – e aos médicos.
Não haverá nenhuma heresia jurídica em se dizer que a gravidez, quando ainda não formado o sistema nervoso central, pode ser interrompida, pela simples razão de não haver bem jurídico a ser tutelado. É o que juristas chamariam de fato atípico.
Esse aborto, portanto, poderia ser feito no SUS, em ambiente hospitalar de segurança e de assepsia. O terrível sofrimento por que passou essa mulher não teria sentido e jamais ré ela seria porque o fato não seria criminoso.
O dado perverso do respeitadíssimo Hospital Pérola Byington: um milhão de abortos foram realizados no Brasil. Desses, cerca de 250 mil resultaram em internações de mulheres. É a quinta causa de morte feminina no país. Uma tragédia que aumenta ainda mais se houver uma sintonia fina nesse dado aterrador, que engloba abortosseguros, feitos em clínicas e abortos inseguros, como esse descrito nesse texto, em que os riscos de morrer se multiplicam por mil.
Essas mortes seriam evitáveis e decorrem de uma legislação avestruz que nega a realidade que ela mesma impõe. Nos países em que a interrupção da gravidez é uma decisão da mulher, as taxas de morte e complicações são infinitamente menores. O Brasil, nessa reação de avestruz, acaba por ter uma fábrica de órfãos, exatamente os demais filhos de quem teve que se submeter a esse açougue e que ficou no caminho.
Essa mulher que passa por essa terrível experiência será ré, de processo cujo julgamento estará a cargo de seus pares, de sua comunidade e acabará sendo julgada duas vezes, pelo crime anacrônico e pelas pessoas que haverão de se sentar no conselho de sentença. Será julgada pela família, será acusada e poderá sofrer processualmente o que jamais imaginou.
Além de quase perder a própria vida, será acusada criminalmente.
Quanto à questão religiosa, já aprendemos a conviver em uma democracia de credos e descriminalizar o aborto não significa troná-lo obrigatório ou dele fazer um método estendido de contracepção, mas apenas de salvar da morte e do sub-mundo centenas de milhares de mulheres, brancas, negras, mulatas, católicas, evangélicas, judias, ateias. A quem não admitir a prática, é simples, basta não fazer.
Essa mulher carioca que morreu, por um aborto mal sucedido, não morreu apenas do tiro que levou. Um outro tiro lhe foi disparado antes, um tiro de fundamentalismo, contra o qual não existe defesa.
A descriminalização importaria em vidas que seriam poupadas, em filhos que continuariam próximos a suas mães. A vida seguiria, menos arriscada, menos hipócrita, menos órfãos, menos humilhação, menos dor, menos desespero, menos solidão.
Seria um enorme avanço.
____________________________________________________________
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça no Estado de São Paulo.
Fonte: JusBrasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário