Já me perguntaram algumas vezes: “E se sua mãe tivesse te abortado?”. E aí vai a minha resposta. Se minha mãe tivesse me abortado:
Possibilidade 1: Ela teria morrido, pois, como mulher negra pobre periférica, não poderia ir a uma clínica de aborto, muito menos viajar para outro país onde se poderia fazer o aborto legal e seguro – como as ricas fazem.
Possibilidade 2: Ela teria sido presa, pois o aborto, no nosso país, é crime.
Possibilidade 3: Ela não teria passado pelo drama de ser mãe solteira (e abandonada) em uma família pobre e religiosa. Ela não teria que ter saído de casa tão cedo. Ela não teria passado fome. Ela não teria abandonado seus estudos. Ela poderia ter feito uma graduação em ensino superior. Ela não precisaria ter se submetido a um branco burguês, do qual depende até hoje para ter uma vida minimamente decente. Ela poderia ter tido uma vida muito melhor do que ela tem hoje e, quando escolhesse ter um/uma filho/a, este/a também viveria melhor do que eu vivi.
Muitas mulheres quando engravidam, especialmente se for na adolescência, entram em um estado de desespero tão grande, que se sujeitam às duas primeiras possibilidades na esperança de obter a terceira. Porém, isto é pouco palpável para uma mulher negra pobre periférica do Brasil atual. Minha mãe preferiu não arriscar.
Note uma coisa, isso não foi uma “livre escolha”. O medo, a influência moral da igreja, a repressão do Estado e a opressão do capital e do patriarcado restringiram as escolhas dela em “se ferrar” ou “se foder”, para dizer grosseiramente. Isso tudo poderia ser evitado se ela tomasse anticoncepcional? Não, são as causas pelas quais eu luto que poderiam ter evitado, de fato, essas situações. Mas, se quer saber, ela tomava sim anticoncepcional.
E, mesmo que não tivesse tomado, não vem com essa porra de jogar toda a responsabilidade para cima dela, reiterando a ideia de que “mulher tem que se preservar” e blá blá blá. O senso comum não se importa com o aborto dos homens — que, aliás, é extremamente comum. Meu progenitor (genericamente conhecido como “pai”) me abortou e ninguém, NUNCA, foi atrás dele. Ele não sofreu nenhum rechaço, ele não foi responsabilizado, nem ao menos consideraram o abandono dele durante a gravidez um aborto. Só que foi.
Agora, se sua pergunta vai no sentido de querer saber como EU me sentiria se eu tivesse sido abortada pela minha mãe, vai me desculpar, vou te chamar de sem noção, pois não há nexo algum em perguntar como um FETO se sentiria diante de um problemática social, nem sequer consciência eu tinha (e, porra, no seu conceito, o que um feto “sente” realmente está acima do que sentem as mulheres que querem/precisam abortar?). É obvio que todo mundo que é contra o aborto já nasceu, não tem como ter senso crítico sem ter nascido. Então, aproveita que você, como eu, também nasceu e usa o seu.
Eu quero aborto legal, seguro e gratuito.
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*Laryssa Carvalho, 19 anos, estudante de cursinho popular, trabalhadora, feminista negra classista e militante LGBT.
Fonte: JusBrasil
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